Relatório que fez Misael, anjo enviado à Terra, no ano 2009 da era de Jesus de Nazaré…

A Terra era uniforme e vazia e as trevas cobriam o abismo. Deus decidiu fazer o céu, a terra e a luz.
Traçou um esboço a guache creme. Primeiramente pintou uma aguada em toda a área, deixando as zonas claras com a cor do vazio. A cor foi obtida misturando branco opaco, negro-de-fumo, anil e um toque de carmesim.
Pintou tons mais escuros da mesma mistura sobre a aguada inicial, ainda húmida. As áreas suaves do céu, mais claras, obteve-as passando uma esponja. As colinas, os fundos e alguns recortes do céu foram acrescentados depois de o resto ficar seco.
O efeito dos raios solares e o efeito do nevoeiro obteve-os com aguadas transparentes de branco opaco e um pouco de ocre amarelo.
Afastando-se do cavalete, Deus viu que tudo isto era belo. Então pintou todos os animais que existem nos oceanos, na terra e no céu; abençoou-os e ordenou que se multiplicassem.
E apreciando a magnífica obra que saíra do seu pincel, ficou satisfeito. Disse então: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra.»
Depois, entre os Querubins do sétimo céu que presidem às galáxias do universo, pôs Uriel num lugar proeminente, encarregando-o do departamento da via láctea, sistema solar, coadjuvado por vários arcanjos e anjos numa cadeia hierárquica de importância em função dos continentes, terra, mar e céu, por que respondiam.
E nesta hierarquia celeste, atribuiu Deus ao arcanjo Rafael a Terra, a Gabriel a porção da Terra que viria a ser Portugal e a mim, Misael, uma língua de terra da Malcata à Marofa.
Certa manhã, enfadado da rotina da corte celestial, desceu Uriel até mim e acordou-me:
– Misael, a estupidez e as discórdias dos teus protegidos irritaram o Senhor; de forma que se reuniram em concílio os querubins para decidirem se deviam castiga-los ou destruí-los. Vai a essa terra, examina tudo e conta-me o que vires, para que decida conforme o que me relatares.
– Mas, chefe – observei, ainda ensonado – não conheço ninguém naquele fim do mundo…
– Melhor ainda – retorquiu Uriel – assim serás imparcial.
Disfarçando-me de viajante, montei uma nuvem, e parti. Ao cabo de alguns dias, encontrei finalmente nas margens de um rio um grupo de operários que aparelhavam umas pedras; e junto a eles um grupo de três homens que orientavam os trabalhos.
Dirigi-me primeiro a um dos operários que encontrei. Falei-lhe, e perguntei que obra era aquela em que trabalhavam.
– Não sabemos – replicou o operário; e apontando para o grupo dos três homens – mas se queres saber, pergunta ali aos capatazes.
Acerquei-me então dos capatazes e perguntei-lhes que obra era aquela que faziam.
– É uma ponte – respondeu o primeiro.
– Qual ponte, qual carapuça – respondeu o segundo – aqui vai ser um açude.
– Nada disso – respondeu o terceiro – um moinho é que faz aqui falta.
Espantado, misturei-me então com os operários, e conquistando-lhes a simpatia, pude assim saber que, por causa daquela discórdia que durava há anos, se acumulavam toneladas de pedra na margem com grande dispêndio de recursos e trabalho, sem que se visse algum resultado daquilo.
Naquela terra aliás – explicaram os operários – todos sofriam do mal de inveja, não se entendendo para coisa nenhuma. Por isso nada se fazia de útil para o bem comum, com grave prejuízo de todos.
Despedi-me dos operários e desci o rio, numa extensão de uma légua, atravessando tapadas, terras férteis cobertas de mato e giestas, alcançando um alto aberto com uma vista panorâmica, sobre uma paisagem deserta e calcinada. Numa ligeira elevação, a torre de menagem de um castelo, erguendo-se sobre os telhados vermelhos do casario, cuja ruína ofendia a vista.
Chegando à cidade, depois de outro quarto de légua a pé, atravessei as ruas completamente desertas e fui dar a uma praça onde, sentada na escadaria do chafariz, a meio do recinto, vi uma velha que gozava o sol da tarde. Abeirando-me, perguntei-lhe:
– Boa velha, que é feito dos habitantes desta terra?
– Saiba o senhor – retorquiu a velha, levantando os olhos da renda em que trabalhava – que os novos partiram e os velhos foram morrendo.
O sol começava a descer no horizonte. Seguindo caminho, pela rua principal, que tinha um aspecto abandonado e desagradável, entrei num terreiro onde brincava uma criança. Aproximando-me:
– Qual o teu nome?
– João…
E fazendo-lhe uma festa – Brincas a quê?
– Ao faz de conta…
E não avistando mais ninguém – Com quem?
– Com os meus amigos…
– Mas que amigos?
– Amigos de faz de conta…
Afeiçoando-me à criança, a única que vi no meu passeio, temi que aquela terra fosse condenada. Sentando-me num banco de pedra que ali havia, pus-me a cismar sobre o relatório que havia de apresentar a Uriel. Eis como me desenvencilhei para apresentar esse relatório. Chamei a criança e levei-a a Uriel.
– Destruirias – disse – aquela terra, apesar deste único inocente?
Uriel compadeceu-se, deixando tudo como estava. E apanhando uma corrente ascendente, juntando-se aos outros querubins, desapareceu no espaço sideral.
– É que para pior – desabafou Uriel – assim bastava!
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente