Um português da Bismula chamado Reis e um espanhol da Catalunha conhecido por Salvat, encontram-se em França, onde ambos estão emigrados, e falam do seu passado. Dessa conversa resulta a descrição da fantástica desventura do contrabandista Manuel José Brigas, abatido a tiro pelos carabineiros e enterrado em Espanha como um vil malfeitor.
No livro «Três Vidas ao Espelho», Manuel da Silva Ramos, revela o gozo com que se pode contar jogando com as palavras e os conceitos. Com humor, dá-se expressão a uma história fantástica, onde o drama da vida antiga dos habitantes da Bismula, no concelho do Sabugal, se mistura com as ironias da vida. Há nos textos uma espécie de efabulação criativa, exagerando com mestria as formas de vida de antigamente, introduzindo-lhe uma espécie de magia.
Toma-se recurso aos termos populares, algo esquecidos no linguajar actual, os personagens têm apelidos próprios da gente da raia e abordam-se as formas de vida das gentes de antanho nas aldeias pegadas a Espanha, que lavravam as terras e contrabandeavam. Mas no curso das descrições há uma leve transformação do real numa espécie de sonho prodigioso. Exemplo disso é a descrição da visita que Manuel José Brigas fez ao homem que fazia queijos num lugar chamado Poço do Inferno, junto à Malhada Sorda: «A porta estava escancarada e no estábulo meio destruído via-se um homem a ordenhar uma cabra. Ao lado tinha um picheiro e uma francela.» O cabreiro era também vidente e anuncia-lhe que «a morte já está à espera entre Almedilha e Espeja», com referência ao lugar onde o intrépido Brigas tombará alvejado pelo guarda civil Canário.
Para além do drama de Brigas, que se vai preparando para a morte, que sabe virá breve e de forma cruel, fala-se na vida na aldeia, onde as crianças mais fracas sucumbiam nos primeiros tempos de vida, e os habitantes que sobrevinham à mortalidade nos verdes anos, se dedicavam ao cultivo da terra agreste e se aventuravam no negócio do contrabando, desafiando a vigilância apertada das autoridades.
E na noite fatídica, nessa façanha de contrabandista, Brigas também teve de se alimentar com o que levava no farnel:
«Já no trilho de terra que condizia à Quinta das Batoquinhas parou para comer uma bucha. Já estava a andar há três horas e brevemente chegaria à fronteira e nessa altura precisaria de muitas forças.
Tirou do alforge da sua mula castanha a saca com o pão centeio e o toucinho e começou a comer. O vinho do odre fez-lhe bem e aqueceu-o. A noite arrefecera. Sabia que nestas recônditas planarias a noite era um brâmane que arejava o mundo com as suas vestes cor de açafrão.»
E o povo também prova outros sabores: «Chegámos a casa e já fumegavam as castanhas. Doce caldudo! Mergulhei a colher no líquido branco e senti-me outra vez livre. O cansaço tinha desaparecido. E à medida que comia as castanhas, uma a uma, extraídas de uma mina dourada de leite imaculado, pensava que a vida era desgostante mas um minuto de paz e sossego num lar pobre alumiado pelos troncos esbraseados de uma lareira antiquíssima valiam todos os volfrâmios do mundo.»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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