:: 1986 :: :: Em Março de regresso ao Parque Nacional de Doñana com os alunos e nas férias de Verão umas voltas pela Serra do Açor, pela reserva natural das dunas de São Jacinto, Termas de Monfortinho, Monsanto, Alcântara, Olivença e Monsaraz…

:: 1986 :: :: Em Março de regresso ao Parque Nacional de Doñana com os alunos e nas férias de Verão umas voltas pela Serra do Açor, pela reserva natural das dunas de São Jacinto, Termas de Monfortinho, Monsanto, Alcântara, Olivença e Monsaraz…
Não há páginas literárias de realismo cru como as que deixou António dos Santos Vicente no livro «Vida e Tradições nas Aldeias Serranas da Beira». Nelas deixou memória expressiva e sentida das agruras que noutro tempo vivia o povo que habitava na serra do Açor e nas suas faldas.
O epicentro está na terra natal do autor, a aldeia de Fajão, concelho da Pampilhosa da Serra, pejada de gente pobre, que se fazia remediada para enfrentar as dificuldades. Tudo é confrangedor nas descrições rigorosas da vida de antanho. A carência de alimento tinha as pessoas à beira da fome, a ausência de médicos atirava cedo os doentes para a cova, a falta de assistência na velhice fazia com que os idosos trabalhassem até à hora da morte. A fuga para terras distantes, em aventurosa procura de emprego estável, era a solução para os jovens desesperados, assim se despovoando as aldeias da serra.
Depois, o livro embrenha-nos nas tradições que existiam, e que na sua maior parte já só constam nesse registo escrito. No meio das agruras o povo tentava ser feliz, procurando viver os prazeres da vida. Mas o realismo de António dos Santos Vicente, não deixa lugar a muitas conjecturas acerca de uma vida que afinal não era feliz. O povo vivia na miséria, na maior das rudezas, envolvido por grande amargura. O que havia de alegria era apenas um compasso na continuidade das privações e da austeridade.
E o que o povo comia? Apenas aquilo que a terra dava, que outros mimos não chegavam. E raro se alimentava com as melhores dádivas que a lavoura lhe ofertava, porque essas eram guardadas para venda, para angariar algum pecúlio. As pessoas comiam mal e muitas vezes nem sabiam, dentro da ingenuidade, o que era apropriado a uma alimentação equilibrada. Vejamos uma passagem elucidativa:
«Depois de o barbeiro ter analisado que o seu estado tinha piorado, perguntou à esposa qual tinha sido a comida que o seu marido tinha comido, e logo esta disse: um caldo de castanhas!… Caldo de castanhas?… Isso é um veneno – disse o barbeiro… nem todas as pessoas com saúde podem comer esse alimento, por ser muito forte e pesado, e você vai dar castanhas a um doente neste estado? O barbeiro furioso com a senhora só acalmou quando a mulher lhe disse: Senhor António, eu não tinha mais nada que lhe dar!
Compre-lhe uma galinha e vá-lhe dando uns caldinhos e vamos tratando dele da melhor maneira, este é o meu conselho – disse o barbeiro. A mulher aceitou o conselho dado, e como tinha uns magros centavos, foi comprar o melhor que pôde para dar ao marido, como também uma galinha que a tia Maria do Fundo lhe vendeu, por esta apanhar o vício de comer todos os ovos que punha.
E como não havia memória de matarem uma galinha a um doente e este comê-la toda antes de morrer, este belo senhor não fugiu à regra, três dias depois morria também.»
O livro de António dos Santos Vicente comove pela crueza com que relata a vida aldaneja de outras épocas. Uma boa e comovente leitura para quem pretende conhecer, sem evasivas, a rudeza das terras serranas e do povo simples que as habitavam. A pobreza desmedida e angustiante impera a cada linha e causa evidente comoção.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
leitaobatista@gmail.com