O originalíssimo livro-concertina «escrevo risco» da autoria de Américo Rodrigues, Jorge dos Reis e Zigud foi apresentado em Lisboa nas antigas instalações da Fábrica de Braço de Prata. Os riscos da memória de José Neto, pastor da Quinta da Taberna (Videmonte), foram desnudados, de forma surpreendente, no palco de um espaço onde antigamente se fabricava material de guerra. Só visto e… ouvisto.

escrevo riscoO robusto edifício da fábrica de material de guerra de Braço de Prata está protegido por grossa parede amuralhada que esconde um amplo pátio onde as árvores são sentinelas silenciosas da mutação de um espaço onde antes se fabricava material bélico e agora se respira cultura e se bebem ideias. O New York Times considerou, um dia, que a Fábrica de Braço de Prata «é um projecto aberto a todas as formas de arte, sem dogmas ou preconceitos, que se transformou no espaço cultural mais ambicioso de Lisboa».
À nossa chegada, já muito perto das 11 horas da noite, um rancho folclórico terminava a sua actuação, nos jardins exteriores. Uma ampla escadaria enquadrada numa fachada a lembrar um palacete (ou um seminário) dá acesso à porta de entrada que põe a descoberto um amplo corredor repleto de tranquilos visitantes que, em pequenos grupos, conversam e passeiam ao longo das paredes observando uma exposição de pintura.
A Fábrica de Braço de Prata é um espaço decorado de forma minimalista onde as portas, os azulejos, os mosaicos, as janelas, as salas se mantém como antes da revolução do 25 de Abril mas… transformados, agora, em espaços culturais multidisciplinares com destaque para os livros e para a sétima arte.
Os sons de uma banda de jazz ficaram mais nítidos depois de empurrar a porta que escondia a sala Nietzsche para onde estava marcada a apresentação do livro de Américo Rodrigues e companhia. Os ensaios de som, no palco, aconteceram imediatamente após as últimas notas de jazz e já com mais de uma centena de pessoas apinhadas na sala.
Américo Rodrigues, em palco, começou por referir que o pastor Zé Neto era um ser anti-social. «Tentei durante um ano falar com ele mas não consegui», foi a inédita confissão do autor dando o mote para uma invulgar apresentação que aí vinha.
«escrevo risco» é um livro-objecto inspirado na arte de um pastor da Quinta da Taberna (Videmonte), escrevinhador compulsivo que registava nas paredes de xisto da sua aldeia tudo o que ele considerava constituir memória.
O livro já se transformou em filme e está «digitalizado» com o título «Um bando de passarinhos». Uma realidade mais visual do realizador Carlos que descodificou a linguagem poética de Américo Rodrigues.
O gráfico-designer de serviço, Jorge dos Reis, chamou-lhe «estranho objecto livresco de frases do seu quotidiano autobiográfico». «É um objecto que se transformou em livro. Em livro de artistas. É um objecto colectivo a seis mãos. É um objecto dúbio em ruptura com o livro tradicional. Optámos por um objecto para dois planos 50×70 das máquinas tipográficas em offset em consequência dos limites orçamentais», explicou Jorge dos Reis desvendando de seguida que o grafismo inclui três conceitos: arado e relha, a superfície riscada da pedra e a translineação sem hifenização em ruptura com a leitura tradicional através do formato em concertina.
Deu-se início, de seguida, a uma desconcertante improvisação poético-musical para apresentação do «escrevo risco» com a presença em palco de Rodrigo Pinheiro (pianista), Rogério Neves e José Tavares (guitarras) e as superiores representações de Américo Rodrigues, José Neves e Dora Bernardo.
Só visto e… ouvisto.
«O homem que escreve nas pedras. Que olha para o céu, conta as nuvens e escreve… Risca, torna a riscar, emenda a mão. Uma mão atrapalha a outra mão…»
jcl