O Interior necessita de um choque financeiro! Parece hoje consensual que os territórios de baixa densidade necessitam de níveis elevados de investimento produtivo, como uma das condições fundamentais para a reversão do processo de envelhecimento, despovoamento e desertificação.
Ler MaisPorfírio Ramos, natural da freguesia de Alfaiates, concelho do Sabugal, faleceu na tarde de ontem, segunda-feira, 16 de Maio, no Hospital Egas Moniz em Lisboa.
Era frugal mas de grande valor alimentício, a comida de antigamente do povo português, sobretudo ao nível das calorias, muito necessárias para quem trabalhava duro. Na raia sabugalense a população comia em abundância e variava a sua alimentação, embora servindo-se apenas do que a terra dava.
Nas primitivas leis visigóticas do breviário de Alarico (Lex Romana Visigothorum), que reunia um conjunto de leis visigodas e o direito comum aos godos e romanos, as arras tinham a mesma característica que no direito romano, antes de reforma de Justiniano: «Emtio igitur et venditio contrahitur, quum de pretio inter emtorem et venditorem fuerit definitum, etiamsi pretium non fuerit numcratum, Nec pars pretii aut arra data fuerit.» (2.ª parte.)
Quem frequentou as feiras de gado da região pode assistir a este velho costume. O livro «Memórias de Alfaiates e Outras Terras Raianas», do nosso conterrâneo Porfírio Ramos, descreve-o de forma bem viva e pitoresca, pelo que o transcrevo:
«O ti Balhé foi ao mercado para vender a vaca Amarela […] Mal chegou ao mercado, aparece-lhe um comprador, com dois outros a pequena distância. O negócio prometia.
[…]
– Ti Zé, quanto é que quer pelo animal?
– Eu não me chamo Zé. Sou António, mas todos me conhecem só por Balhé. Quero dezasseis notas.
– Vomecê não é nada meigo a pedir!…
– Então diga lá quanto é que dá?
– A vaca até está coxa…
– Isso é que não está!… E não admito que lhe ponha defeitos. É uma vaca valente, outra mais valente não há nas redondezas e é uma estampa de vaca.
– Eu gostava mais se ela tivesse as chaves mais abertas.
– Home!… Vomecê quer cornos mais lindos que os deste animal?
– Não os quero mais lindos nem mais feios que eu não quero cornos. Porra!…
– Está bem. Mas eu queria dizer cornos na vaca. Quem é que quer ter cornos?
Com esta conversa, outras pessoas se foram juntando em volta da vaca, uns para ver as hipóteses de compra, outros apenas por curiosidade e para meter um pouco de conversa, mas, a maior parte, para ver se lhes tocava alguma coisa do albroque.
[…]
– Trabalha ao jugo ou à canga?
– Trabalha ao jugo. Cá na terra todas as vacas trabalham ao jugo. Lá para baixo, para o Campo é que trabalham à canga.
– E trabalha da esquerda ou da direita?
– Aqui vaca amarela sempre trabalhou da esquerda.
– É mesmo a vaca que me convém. Olhe, não nos vamos pôr para aqui a discutir o preço e é pegar ou largar. São quinze notas e vamos já beber o albroque.
O ti Balhé ficou completamente baralhado, pois eram muito poucas as esperanças que tinha de vender a vaca por mais de treze notas e, de repente, aparecem-lhe ali, sem discussão, quinze notas. Nem queria acreditar.
– Eu é que não tiro um tostão, não senhor.
– Não me diga que também tem palavra de Rei?!…
Nesta altura intervêm os assistentes para ganharem o direito a um copo de vinho do albroque.
– Então vamos fazer assim. Não são quinze notas nem são dezasseis notas. Parte-se a diferença ao meio que é para ninguém ficar a ralhar.
– Mas eu é que a não vendo por menos de dezasseis notas. E vou Ter pena toda a vida de um animal como este. Parece que entende tudo e que só lhe falta falar. E a força deste animal!!!…
– Tenha paciência ti Balhé, mas não dou mais que as quinze notas.
– Agora não me digam que querem parecer dois burros teimosos. São as quinze notas e meia e acabou-se. Vamos beber o albroque.
– Nestas coisas já se sabe que é assim. Parte-se a diferença ao meio.
– Pronto. Então que a diferença não seja por mim. São as quinze notas e meia e é pegar ou largar. Não dou nem mais um tostão.
O ti Balhé estava desorientado com tanta facilidade. Estava convencido de que alguma coisa lhe passava ao lado. Seria que o homem não tinha dinheiro para lhe pagar a vaca e que ele ia ficar sem vaca e sem dinheiro?
– Mas é pagamento a pronto?
– Dinheirinho contado já aqui.
E nisto o comprador meteu a mão ao bolso e puxou por um monte de notas.
– Está bem. Então está vendida.
Nesse preciso momento aparece um sobrinho do ti Balhé a correr, ofegante, quase sem poder respirar, e diz:
– Tio, não venda a vaca. As vacas estão pelas horas da morte. Essa vaca hoje é para valer , bem à vontade, dezoito notas.
– Chegaste tarde meu rapaz. A vaca já está vendida. Comprei-a eu por quinze notas e meia.
– Bem, mas a vaca ainda não está vendida. Ainda não foi paga o albroque.
– Vendida…já está, mas até ser pago o albroque toda a gente se pode negar. Mas, a verdade é que não fica nada bem um homem dar a palavra e depois negar-se.
– Desculpe lá, mas vomecê não percebe nada de negócios. Enquanto não houver albroque não há palavra dada. Toda a gente sabe isto.
– Não, não, não. O negócio não está feito.
– Mas vomecê não vai encontrar ninguém que lhe dê mais pela vaca.
Nisto aproxima-se outro indivíduo que estivera sempre de parte, fingindo não olhar sequer para aquele sítio, mas que estava resolvido a dar logo uma nota de lucro ao comprador, assim que o negócio estivesse fechado e atirou à queima roupa:-
– São dezasseis notas e meia que as dou eu. Contadinhas já aqui.
– Não. O meu sobrinho diz que vale dezoito notas e já agora eu queria ver primeiro como está o mercado. Eu nem sequer vi os preços!…
– Dezoito notas eu digo-lhe já que não dou. Olhe que os preços, de um momento para o outro, caem na vertical. Se quiser é um negócio de olhos fechados, mas são dezassete notas. E não dou nem mais um tostão. É pegar ou largar.
O ti Balhé podia dizer para consigo mesmo que já tinha ganho o dia, mas sentia-se pequenino e complexado no meio deste negócio em que tudo fora tão improvisada. Bem que podia comprar um fato de pana ao seu sobrinho. Mas agora sentia medo de tudo e sentia-se incapaz de tomar uma decisão. Olhou para o sobrinho, com ar interrogador e este respondeu-lhe com um aceno.
– Passe para cá o dinheiro e vamos beber o albroque.
Foi vinho pago a todos os presentes. Foram dois litros de vinho.
O dia ainda não estava terminado e quando regressaram para junto do animal, nova surpresa o esperava. Um outro comprador se aproximou e ofereceu dezoito notas.
O ti Balhé pareceu ter uma ligeira hesitação no momento de entregar a corda da vaca, mas logo um grito unânime de ameaça, lhe retirou quaisquer veleidades.
– Agora, depois do albroque… já não saia daqui com vida. É a palavra de honra das pessoas. Depois do albroque uma nega paga-se com a vida. Nem pense sequer em negar-se!!!…»
E concluo com as palavras do autor que «é mesmo assim, nesta terra. Pode ter havido escritura de compra e venda feita no Notário e toda a gente acha legítimo que as pessoas se arrependam e considerem a venda nula, mas que jamais alguém pense em negar-se depois do albroque».
«Arroz com Todos», opinião de João Valente
joaovalenteadvogado@gmail.com
A raia sabugalense tem um novo testemunho em livro – «Memórias de Alfaiates» – que relata as tradições e a valentia do seu povo, resultante do aturado trabalho de um ilustre alfaiatense, o Dr. Porfírio Ramos. Ler Mais