Neste pequeno artigo, gostaria de versar muito superficialmente, porque a característica de um post não dá para mais, a simbologia da capeia e do forcão, deixando algumas pistas para decifrar o seu sentido mais profundo, que, na minha opinião, é religioso e ligado à gnose iniciática.
Esta tradição, que nos nossos dias está já bastante simplificada, consiste na selecção de uma árvore da floresta, seu abate, descasque e secagem. Nesta tarefa os jovens solteiros embrenham-se na mata acompanhados de uma pessoa mais experiente que os orienta na escolha. Posteriormente constrói-se uma estrutura em madeira de forma de triângulo regular (forcão) em que o eixo é formado pelo tronco da referida árvore. A estrutura é posteriormente manuseada numa prova de destreza colectiva.
«Este ritual é em tudo idêntico aos rituais da puberdade destinados a fazer a passagem de uma classe de idade para outra com a iniciação dos neófitos na cosmogonia dos Tempos Primordiais. Há vários estudiosos deste assunto, entre os quais Heinrich Schurtz in Altersklassem Männerbünde e Hutton Webester in Primitive Secret Societies»?
Estes rituais consistiam basicamente no isolamento do grupo na floresta ou no interior de uma cabana e na morte simbólica através do silêncio, abstinência alimentar, exercícios físicos ou tortura, provas de destreza e a ressurreição e regeneração espiritual como homem gnóstico, que faziam parte dos Männerbünde pré-cristãos e se prolongaram nas organizações mais ou menos militares da juventude, com os seus símbolos, tradições secretas, ritos de entrada e danças.
Muitos ritos de iniciação xamânica, desenvolviam-se também em torno do mito da árvore cósmica. A árvore era o centro do mundo (imago mundi), ligando como um eixo as três zonas cósmicas – a terra o ar e o mundo subterrâneo – e contendo por tal motivo, simbolicamente o universo inteiro. A árvore cósmica era nos ritos de iniciação um meio de acesso ao centro do mundo, ou seja, ao coração da realidade, da vida e da sacralidade.
Um exemplo (Citado por Mircea Elíade in Ritos de Iniciação e sociedades secreta) destes rituais iniciáticos em que encontramos aqueles dois aspectos, só para o leitor fazer uma ideia do que falamos, encontramo-lo ainda entre os Bâd, uma tribo Australiana, em que os velhos preparam a iniciação dos jovens retirando para a floresta e procuram uma árvore ganbor «sob a qual Djamar» – o Ser supremo – «descansou nos tempos antigos». Um mágico caminha à frente, com a missão de descobrir a árvore. Assim que a encontram, os homens rodeiam-na a cantar e cortam-na com as suas facas de sílex. Por este ritual, a árvore mítica do Tempo original, aquando da criação do mundo, é tornada presente e através dela os homens participam na plenitude desse tempo sagrado, primordial, regenerando toda a vida religiosa da comunidade.
É curioso como o ritual das capeias começa com este costume de afastamento para a floresta e da escolha de uma árvore, e uma prova de destreza que mantém toda a estrutura de um rito iniciático. Interessante é ver como essa árvore serve de eixo a uma armação triangular, com tantos lados quantos os elementos do universo cósmico.
O Triunfo do cristianismo pôs fim a estes mistérios e às gnoses iniciáticas, mas adaptando-os bem como à filosofia grega à explicação dos novos sacramentos e atribuindo-lhe novos significados cristológicos. Foi esta adaptação da linguagem universalmente inteligível dos símbolos e da filosofia platónica, que permitiu que o cristianismo primitivo, interdependente de uma história local (a salvação do povo de Israel), se tornasse uma história santa e universal (de salvação de toda a humanidade). Damos só três exemplos desta linguagem adaptada: A liturgia síria explica o rito do baptismo recorrendo àquela concepção pré-cristã do universo: «Assim, oh Pai, Jesus viveu ainda pela Tua vontade e a vontade do Espírito Santo nas três moradas terrestres: na matriz da carne, na matriz da água baptismal e nas cavernas sombrias do mundo subterrâneo» (citando Jacób da Sarug in Consécration de l’eau baptismale); O símbolo da Árvore Cósmica e do centro do mundo são , por sua vez, integrados pelos pais da Igreja no símbolo da Cruz, que é descrita como «árvore que sobe da terra aos céus» ou a árvore que «saindo das profundezas da Terra, se ergueu para o Céu santificada, até aos confins do universo» (Mircea Elíade in images et symbole). Por último, Clemente de Alexandria, padre da Igreja, dirigindo-se aos pagãos, adoptando os motivos iniciáticos do neoplatonismo, dizia: «Oh mistérios verdadeiramente santos! Oh luz sem mistura! As tochas iluminam-me para contemplar o céu de Deus, torno-me santo pela iniciação.» (in Protrepticus, XII, 119, 3; 120 1)
Mas alguns motivos iniciáticos, os mais conhecidos dos quais são cerimónias da puberdade, sobreviveram até à idade moderna, conservando razoavelmente a sua estrutura iniciática, apesar da forte pressão eclesiástica em ordem à sua cristianização.
Este exemplo da capeia e do seu forcão ilustra, na minha opinião, uma das modalidades de sobrevivência destes ritos iniciáticos no Portugal cristão. Pela sua dessacralização e simplificação já não pode ser considerado como um rito, porque embora implicando provas e uma instrução especial (escolha da arvore, abate, construção do forcão e manuseamento numa prova de destreza) já não contempla o segredo.
É contudo, seguramente um costume popular de aspecto misterioso que deriva de cenários iniciáticos pré-cristãos, cuja significação original se perdeu no tempo, tal como as mascaradas e as dramáticas que acompanham as festas cristãs de Inverno e que decorrem entre o Natal e o Carnaval.
«Arroz com Todos», opinião de João Valente
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