Em 10 de Maio de 1811, há rigorosamente 200 anos, ocorreu um dos grandes actos de valentia da história militar francesa, que foi a evasão da guarnição que ocupava a praça de Almeida. Os homens do general Brenier, seguindo as instruções do marechal Massena, romperam com argúcia e coragem o cerco das tropas aliadas, juntando-se ao seu exército em Espanha. Massena conseguiu com este glorioso feito mitigar o fracasso que foi a terceira invasão de Portugal. Ler Mais
Auguste Frédéric Louis Viesse de Marmont (1774-1852) foi um prestigiado marechal de França que serviu Napoleão em várias frentes, nomeadamente na guerra peninsular, onde substituiu Massena no comando do Exército de Portugal. Foi Marmont que perpetrou a quase desconhecida quarta invasão, no decurso da qual se instalou no Sabugal.
Oriundo de uma família nobre, aos 15 anos era subtenente de infantaria. Progredindo depressa na cadeia hierárquica, tornou-se em breve assessor do promissor general Bonaparte, acompanhando-o nas campanhas de Itália e do Egipto.
Voltou para a Europa já como general de brigada, em 1799, sendo então nomeado conselheiro de Estado e, pouco depois, comandante da artilharia da reserva do exército, altura em que se tornou general de divisão.
Em 1805 combateu na batalha de Ulm e, no ano seguinte, foi nomeado comandante geral da Dalmácia, tendo como missão desbloquear os franceses sitiados em Ragusa (actual Dubrovnik) pelos russos, o que cumpriu com êxito.
Em 1808 foi distinguido com o título duque de Ragusa e no ano seguinte participou na campanha austríaca. Foi no decurso dessa campanha que Napoleão o fez Marechal de França e governador-geral de todas as províncias da Ilíria.
Em Julho de 1811 o Imperador enviou-o para Espanha, onde substituiu Massena à frente dos cerca de 50.000 homens do exército de Portugal.
Militar prestigiado e reconhecido estratega, o marechal Marmont manobrou as suas tropas com mestria e, fazendo jus a um pedido formal de Napoleão, cooperou com os demais comandantes franceses que estavam na península. Foi assim que, descendo para sul, juntou as suas forças às do general Murat e obrigou Wellington a desistir da tomada de Badajoz.
O objectivo fixado ao seu exército era o da invasão de Portugal em tempo oportuno, quando tal lhe fosse indicado por Napoleão. Porém o Imperador preparava a guerra com a Rússia e desviara as atenções da Península Ibérica. Entretanto Marmont estendia a sua responsabilidade às Astúrias, Estremadura, Castela-a-Velha e Leão.
No início de 1812, Napoleão ordena-lhe que se fixe em Salamanca e no final de Março, face a nova e fortíssima ofensiva de Wellington sobre Badajoz, manda-o desencadear uma investida em Portugal, através da Beira Baixa.
No dia 3 de Abril de 1812 Marmont inicia a operação, entrando em Portugal e atacando Almeida, que porém resistiu. Avança depois por Alfaiates e instala o seu acampamento no Sabugal, a partir de onde lança colunas para Penamacor e Fundão. Castelo Branco é saqueada a 12 de Abril, o mesmo sucedendo a Pedrogão e Medelim no dia seguinte. A 14 um destacamento atacou a Guarda, onde as milícias portuguesas de Trant foram desbaratadas.
Entretanto, no dia 7 de Abril, Badajoz caiu nas mãos do exército anglo-luso e Wellington veio para norte, a fim de dar combate aos invasores. Marmont sente que não será capaz de enfrentar os ingleses e portugueses e a 24 de Abril de 1812 começa a retirada. Esta quase desconhecida quarta invasão de Portugal durou apenas 20 dias.
Wellington passou pelo Sabugal e Alfaiates e deu perseguição a Marmont em território espanhol. Uma força com cerca de 27.000 ingleses e 18.000 portugueses, atravessou o rio Águeda, e avançou sobre Salamanca. A 28 de Abril foram conquistados os fortes que defendiam a cidade, mas no dia 18 de Julho os franceses saíram vitoriosos dos combates na zona de Tordesilhas.
A derrota francesa só aconteceu no dia 22 de Julho, na batalha de Arapiles, onde Marmont foi gravemente ferido, perdendo um braço.
Face ao ferimento o marechal regressou a França para se recuperar. Em Abril de 1813, já recuperado, recebe de Napoleão um novo comando, passando a combater na Alemanha.
No ano seguinte, quando as tropas aliadas cercaram Paris, Marmont esteve entre os comandantes que defendiam a cidade. Face às dificuldades em manter as posições, foi escolhido pelo Imperador para negociar com os aliados. A capitulação foi assinada em 31 de Março e a 4 de Abril Marmont retira com as suas tropas para a Normandia, em total contradição com as ordens que recebera do Imperador e ignorando os protestos dos seus oficiais e soldados. Este acto ditou que passassem a chamar-lhe duque de «ragusade», para significar traição.
Paulo Leitão Batista
A «política de terra queimada» posta em prática por Wellington, transformando Portugal num deserto, para que as tropas invasoras não encontrassem meios de subsistência, tornaram os esfomeados soldados franceses em verdadeiros animais ferozes, sofrendo as populações os consequentes actos de barbárie.
À medida que o exército de Massena avançava os franceses davam-se conta de que em Portugal apenas encontrariam fome e miséria. O povo abandonara as aldeias, vilas e cidades, escondera os meios de subsistência que não pudera transportar, queimara as searas, destruíra fornos e moinhos, envenenara fontes e poços. Esta bem sucedida táctica, onde os portugueses de tudo se desprenderam por manifesto patriotismo, foi dois anos depois seguida na Rússia, onde as tropas de Napoleão Bonaparte voltaram a sentir os efeitos da fome, a que se juntaram os do frio extremo.
Nos dias de marcha o soldado comia a parca ração de biscoito que lhe era distribuída, mas quando a coluna parava e acampava, eram de imediato organizadas batidas, ou acções de saqueamento, procurando-se víveres pelos aglomerados populacionais em redor. Como não encontravam vivalma nem meios alimentícios à mão, procuravam adivinhar onde estavam escondidos. Cavavam onde houvesse terra remexida de fresco e, por vezes, eram premiados com a descoberta de uma arca cheia de cereal. Esbarrondavam as frágeis paredes das casas e encontravam nos vãos falsos arcas salgadeiras cheias de carne de porco. Entravam nas lojas e por vezes ficavam deslumbrados com pipas cheias de vinho que os seus proprietários, na pressa da fuga, não tiveram tempo de entornar. Atentos aos sons do campo detectavam o balir, o mugir e o grunhir dos animais domésticos que ficaram para trás ou que tresmalharam, apressando-se a conduzi-los ao acampamento, onde eram abatidos à medida das necessidades.
Na falta de outro alimento a soldadesca sacrificava os burros de carga que acompanhavam o exército. Nunca tanto asno foi comido nas terras portuguesas como nos dias da terceira invasão francesa. Das largas centenas de burros que as hostes napoleónicas trouxeram para transporte de carga e de feridos em combate, apenas parcas dezenas regressaram a Espanha no final.
Cada regimento organizava as suas pilhagens para buscar sustento. Chefiadas por sargentos, as colunas de saqueadores, que os generais designavam de «forrageadores», iam pelo campo seguindo direcções diferentes. Por vezes estas sortidas demoravam dias, só regressando quando tivessem deitado mão a algo capaz de matar a fome aos camaradas. As aldeias estavam desertas, e ai do desventurado que estes soldados encontrassem. Vinham-lhe ao de cima instintos de ferocidade e eram capazes de o torturarem até à morte para obterem a revelação de onde havia algo para pilhar.
O capitão Jean-Baptiste Delafosse, que esteve integrado no corpo de Reynier, publicou as suas memórias sobre a campanha de Portugal, onde descreveu, com manifesta emoção, o que a tropa gaulesa passou, justificando assim os actos de barbárie praticados sobre a população portuguesa:
«Desgraçado do camponês que o destino fazia encontra-se com saqueadores! O pobre infeliz via-se, em primeiro lugar, despojado e, muitas vezes, cúmulo do horror, era morto… por homens a quem a fome, essa dura necessidade, tinha tornado cruéis e semelhantes a selvagens (…). Necessitavam de guias em localidades desconhecidas; apanhavam um, ordenavam-lhe que os conduzisse a uma aldeia, não era a sua, bem entendido, onde ele os levava; chegados lá, forçavam-no a indicar os esconderijos, mas, como fazer? O pobre diabo não os conhecia (…). Passavam-lhe uma corda pelo pescoço e o infeliz ouvia estas palavras: “Enforcado até que nos digas onde está o grão!”… Como não o sabia indicar, suspendiam-no até começar a ficar azulado; então punham-no em terra para que falasse! Infeliz! (…) O soldado, na sua ferocidade, dizia-lhe: “Ah, tu não queres dizer onde fica o grão? És um bandido, à forca!” E enforcado ficava.»
Mas vingança gera vingança e o mesmo capitão francês descreve um episódio atroz a que assistiu:
«Em frente de uma casa isolada encontrámos, na nossa marcha de retirada, quatro corpos enforcados numa árvore!… Entrando no rés-do-chão, um espectáculo medonho ofereceu-se aos nossos olhos: sobre a parede estava pregada a pele de um homem esfolado há pouco tempo e por baixo estava escrito em português: “Dragão francês, esfolado vivo, por ter enforcado os nossos homens!…”»
Era esta a resposta do povo português face ao saque, às sevícias, à morte por divertimento e ao abuso das mulheres constantemente praticados pelos soldados franceses.
A prática selvagem de esfolar franceses começou logo em Riba-Côa, nos primeiros dias desta infernal terceira invasão, quando em Nave de Haver foram detidos por populares dois oficiais franceses (um coronel e um tenente) e dois soldados que se haviam perdido da escuridão e ali tinham ido parar. O tenente d’Oraison, atingido com um tiro, foi de seguida esfolado pelas mulheres da aldeia, que assim exprimiram o ódio aos franceses que as violavam e lhe matavam os maridos e os filhos. O coronel Pavetti e os dois soldados foram violentamente torturados e enviados à tropa regular anglo-portuguesa, que estava do outro lado do Côa. Ao ter conhecimento do sucedido, Massena mandou cercar a aldeia e fuzilar os culpados, sendo conduzidos ao quartel francês um conjunto de camponeses, que pagariam com a vida a ousadia e a barbárie popular. Wellington, ao saber do caso, escreveu a Massena, intercedendo pelos infelizes, que eram, assegurava-o, homens da Ordenança portuguesa. Deveriam por isso ser tratados como prisioneiros, da mesma forma que ele tratava os soldados franceses capturados. Massena, agastado com a argumentação de Wellington, que na sua perspectiva apenas defendia assassinos, respondeu-lhe com azedume: «Não lhe fica nada bem falar da sua lealdade nos actos de guerra e no seu respeito pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas. Pois não é o senhor que obriga os portugueses, dos quais, no entanto se diz protector, a devastar as suas propriedades e a fugir quando chegam os franceses?». E os pobres camponeses de Nave de Haver foram de facto executados.
Foram tempos tenebrosos, onde a ira e a sede de vingança tomaram conta de tudo. Tempos que importa evocar na perspectiva de se tomar consciência da desumanidade que sempre acompanha os conflitos armados entre as nações e do sofrimento atroz que por essa via é imposto às populações atingidas.
Paulo leitão Batista
Passou mais um ano sobre a importante batalha do Sabugal, que aconteceu em 3 de Abril de 1811, no quadro da guerra peninsular. Para o ano fazem-se 200 anos e até ao momento nenhuma autoridade responsável avançou com a ideia de evocar esse momento histórico.
O exército do marechal Massena, cuja fama de estratega militar só era superada pela do próprio imperador Napoleão Bonaparte, tinha batido em retirada após não ter sido capaz de atravessar as Linhas de Torres Vedras e tomar Lisboa. O segundo corpo, comandado pelo General Reynier cumprira as ordens do marechal e instala-se no Sabugal, onde foi surpreendido pelas forças anglo-lusas de Wellington, que atacaram o seu acampamento no sítio do Gravato obrigando-o a retirar para Espanha.
Massena não queria desistir da conquista de Portugal e o seu recuo era apenas estratégico.
Não conseguindo entrar em Lisboa, os 65 mil homens do exército francês fixaram-se em Santarém, onde estiveram durante semanas aguardando reforços. Mas o caso é que os franceses ficaram isolados, sem conseguir estabelecer comunicações com os restantes corpos de exército que operavam em Espanha e desconhecendo por completo se as restantes movimentações ordenadas pelo imperador se estavam a cumprir. Cansado de esperar e já com imensas dificuldades em alimentar o seu exército, Massena decidiu recuar. Fê-lo de forma controlada, mas seguido de perto pela tropa de Wellington.
Quando conseguiu comunicar com os corpos de exércitos que operavam em Espanha, verificou o ponto da situação: a sul o marechal Mortier conquistara Badajoz e Campo Maior e tinha ali estacionadas forças consideráveis; o marechal Bessiéres marchava com um corpo de exército para Ciudad Rodrigo, vindo do norte de Espanha. Face a esta realidade Massena elaborou um plano audaz, disposto a relançar a invasão: abandonar na fortaleza de Almeida, tomada pelos franceses, os doentes e feridos e tudo o mais que embaraçava os movimentos do seu exército e seguir pelo vale do Côa até ao Sabugal, depois para Belmonte e Penamacor, entrar em Espanha, atravessar Coria e encontrar-se com o exército de Mortier em Alcântara. Dali lançaria uma forte ofensiva sobre Lisboa, seguindo desta vez pela margem esquerda do Tejo.
O arrojado plano de Massena de fazer uma ofensiva pelo Alentejo, confrontou-se porém com a recusa do marechal Ney, que comandava o 6º corpo, em obedecer a essas ordens, o que levaria à sua exoneração e substituição. Esta contrariedade fez-lhe perder o tempo suficiente para que Wellington, apercebendo-se de que a movimentação que os franceses ensaiavam não era lógica, avançasse para o Sabugal, onde já estava a vanguarda de Massena, e aí atacasse o corpo do general Reynier, infligindo-lhe uma derrota
Com a linha de operações interceptada, e um corpo de exército destroçado, nada mais restou a Massena que mandar retirar todas as suas tropas de Portugal, assim terminando a terceira invasão.
Foi esta a importância histórica da Batalha do Sabugal na guerra peninsular. Foi decisiva, na medida em que fez desistir os franceses de tentar invadir o nosso país. De facto, permaneceram mais dois anos em Espanha, mas não mais tentariam ocupar o solo português.
É possível que as entidades do concelho não se aponham à tarefa de comemorar os 200 anos da Batalha do Sabugal, mas fica a promessa que no ano que vem o Capeia Arraiana voltará a evocar a data.
plb
Os colaboradores deste Blogue, Adérito Tavares e António Cabanas, lançaram-nos como que um repto: as relações entre nós portugueses e esses vizinhos tantas vezes ignorados, que são os espanhóis. Como quase todos os que escrevemos no Capeia Arraiana, somos gente da Raia, porque não aceitá-lo?
