Todas as primaveras, pela semana santa, no quarto crescente, Francisco Maria Manso, médico de Aldeia do Bispo, com consultório no Sabugal, levava uma centena de homens a caminho da serra das Mesas para as famosas caçadas aos javalis. As campanhas, realizadas nos anos 30 e 40 do século transacto, reuniam gente ilustre e pessoas do povo, numa irmandade de circunstância.

«Caçadas aos Javalis» do Dr. FramarUns iam de espingarda aperrada, prontos a dar fogo sobre os porcos monteses, outros seguiam de pau armado, servindo de batedores, e meia dúzia de populares trabalhavam na logística. A comitiva partia cedo para a serra e juntamente com os homens seguiam dezenas de cães e alguns cavalos e burros carregados de mercadorias.
As caçadas eram autênticas campanhas militares, sujeitas a duras regras, impostas pelo comandante e organizador do evento. Mas também forneciam momentos de folguedo, com reuniões à volta da fogueira, degustando suculentas refeições, bebendo cabonde e contando anedotas e façanhas.
Mas para o comandante Francisco Maria Manso, as caçadas eram sobretudo uma jornada de puro prazer e de exercitação, como se de um treino para uma guerra se tratasse. No seu livro «Caçadas aos Javalis», que escreveu sob o pseudónimo Dr Framar, deixa apontamentos de grande valia para a história das montarias em Portugal. Neles fica claro que as caçadas se não resumiam ao gosto de andar em busca de javalis, linces e lobos. Também havia movimentos auxiliares, com as deslocações da caravana, as refeições e as dormidas no cabanal anexo ao lagar da Quinta do Major, no coração da floresta da Marvana.
Do livro retiramos um trecho que explicita o rigor com que se avançava nas campanhas, com os fornecimentos devidamente planeados:
«Os preliminares do costume. Carta ao compadre Tenente Lopes, para Vale de Espinho, ordenando a ementa: pão, batatas, azeite, vitela, vinho etc. Reunião no Barroco Branco, dia 9 de Abril e merenda nos Carvalhos Basteiros. Arraial! Ordem para apear os cavalos. Dos alforges saem borrachas de vinho, suculentos ranchos de campanha.
Merendas no relvado da Valsa, posição à mesa: sentado no chão… ou deitado. Camaradagem leal. As merendas sobejam e as borrachas passam para os batedores. Marcha geral (a caminho do lagar de azeite, que serve de base à batida).»
Ainda do livro tiram-se referências esparsas aos manjares das campanhas. No primeiro dia cozia-se no panelão bacalhau com batatas e gravanços. No segundo matava-se a vitela que acompanhara a caravana, que depois era assada no espeto. Para o terceiro e último dia guardava-se parte do resultado da montaria. Se houvesse javardo morto, eram-lhe retirados e guisados os fígados e os rins. Igualmente se cozinhava a caça miúda que se houvera interposto defronte do cano das espingardas.
Na campanha não havia mimos. Cada homem, segundo o artigo 6º do Regulamento, tinha de levar dois pratos de alumínio, guardanapo (se não achasse supérfluo, que no mato limpa-se a beiça à manga do casaco) e um copo. A organização apenas garantia comida e um espaço debaixo de telha onde cada um se poderia espojar e enrolar no cobertor que haveria de ter trazido de casa. O almoço e a ceia eram regados com vinho, que abundantemente jorrava dos odres, havendo sempre para o final da refeição um copo de café e umas gotas de aguardente ou de licor.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista

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