A pedido antigo de um leitor, e para acabar de uma vez com as meias verdades sobre o assunto, hoje vou demonstrar porque é que as licenças do Subparque Eólico do Troviscal e São Cornélio em Sortelha, e por maioria de razão do Parque Eólico da Raia, são nulas. Aqui vai, com o agradecimento da preciosa contribuição da Dr.ª Heloísa Oliveira cujo raciocínio rigoroso seguimos e a quem encarecidamente agradecemos porque sozinhos não chegaríamos lá tão facilmente. (Continuação.)
Por último e para acabar, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa «Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural», que tem a contrapartida de imposição ao Estado de deveres de protecção e incentivo.
Por isso o mesmo artigo 78.º, n.º 2, alínea c) «incumbe ao Estado, em colaboração com os agentes culturais (…) promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum» e a alínea e) impõe ao Estado a tarefa de «articular a política cultural e a demais políticas sectoriais», nomeadamente, energética e ambiental e o artigo 9.º consagra, enquanto tarefa fundamental do Estado, na sua alínea e) «o dever de proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preserva os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território».
Resumindo: A CRP, reconhece um direito fundamental à fruição desse mesmo património, a par do dever da sua defesa, o qual o legislador concretiza classificando móveis e imóveis que assumem relevância particular, de tal forma que beneficiem de um estatuto de protecção acrescida e concreta.
No caso de Sortelha, como se demonstrou, para além de constar do SIPA como conjunto e de ter sido classificada como Aldeia Histórica, vários dos seus imóveis fazem parte foram classificados, para além de outros classificados existirem na sua área de protecção.
O diploma que regulamenta esse tipo de monumentos é a Lei de bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural (aprovada pela Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro (LAP), que estabelece um área de protecção automática dos bens imóveis classificados de 50 metros (artigo 43.º, n.º 1), a contar dos seus limites externos.
Contudo, este o normativo não é aplicável ao caso concreto porque aqui em causa não está a protecção física dos imóveis classificados e da Vila – que não serão fisicamente afectados pelo Parque Eólico da Raia – mas sim a dimensão cultural do bem, que resulta do seu conjunto: a sua inserção no ambiente que o rodeia, bem como o seu valor único enquanto Aldeia Histórica, enquanto local de memória colectiva e reconstituição da época medieval.
Estamos, portanto, a falar da protecção do conjunto da Antiga Vila de Sortelha, que é a razão pela qual os monumentos beneficiam de estatuto de património protegido e também pela qual foi dado financiamento comunitário relevante para sua reabilitação e é visitada anualmente por milhares de pessoas.
É, numa palavra, a identidade de Sortelha, a qual pode ser afectada mediante afectação do seu conjunto, ou, na expressão da lei, do seu contexto.
Esta realidade não foi descurada pela lei, porque nos termos do disposto no artigo 52.º, n.º 1, da LAP «O enquadramento paisagístico dos monumentos é objecto de tutela reforçada».
E essa tutela reforçada é concretizada no n.º 2 deste artigo da LAP, onde se dispõe que «nenhumas intervenções relevantes, em especial alterações com incidência no volume, natureza, morfologia ou cromatismo, que tenham de realizar-se nas proximidades de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, podem alterar a especificidade arquitectónica da zona ou perturbar significativamente a perspectiva ou contemplação do bem».
Ora do processo instrutor nada resulta quanto a preocupações no que toca à protecção do património cultural – tarefa fundamental do Estado – nem dos direitos culturais dos residentes e visitantes de Sortelha.
Pelo contrário, ter-se-ão bastado com a consideração de que os aerogeradores mais próximos de Sortelha distam 800 metros (subparque eólico do Troviscal), muito para lá da zona de protecção dos mesmos.
Mas como se disse, não é a zona de 50 metros de protecção física dos monumentos de 50 metros que está aqui em causa, mas a conservação do valor de Sortelha no seu conjunto, ou, conforme se disse, da sua identidade.
Parece que os 800 metros de distância dos aereogeradores em relação à Vila, é num contexto densamente urbano uma distância significativa. Mas não é assim.
À concretização do disposto no artigo 52.º da LAP no contexto de Sortelha, é tarefa que compete ao IGESPAR casuisticamente, pela identificação do menor impacto paisagístico que as obras tenham num monumento classificado.
Ora a única intervenção do IGESPAR no processo foi para acompanhar trabalhos arqueológicos a realizar na construção do Parque.
Houve portanto violação da obrigação prevista no 52.º da LAP, na medida em que não houve qualquer tutela do enquadramento paisagístico (muito menos tutela reforçada, como foi sendo sucessivamente licenciado um projecto de construção de 50 torres eólica em torno de Sortelha sem nunca ser tido em conta os monumentos nacionais aí presentes (muito menos o seu enquadramento paisagístico.
E o IGESPAR podia concluir facilmente que o subparque eólico do Troviscal se situa claramente no campo das intervenções proibidas, porque situando-se a 800 metros de Sortelha em campo aberto e limpo e reduzindo o impacto da distância sobre um aglomerado urbano em forma de anfiteatro totalmente virado para o mesmo, afecta significativamente o enquadramento do monumento e retira a identidade de Sortelha enquanto Aldeia Histórica.
Isto é tanto mais grave porque, conforme ficou dito, nada no processo dos promotores faz notar qualquer tipo de preocupação com o cumprimento do estatuído no artigo 52.º da LAP.
Neste sentido, uma vez mais estamos perante uma flagrante violação da LAP e do artigo 78.º da CRP, cuja consequência é, uma vez mais, a nulidade das licenças.
Concluindo:
Estes argumentos chegam e sobram para demonstrar que estes parques foram irregularmente licenciados.
A Câmara actuou na convicção de que os parques eólicos eram de interesse para o concelho e legais. Mas isso não chega… «Cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém!»
Porque não houve o cuidado de ponderar todas as variáveis, designadamente as que se aduziram acima, corre-se o risco de uma acção popular inviabilizar todo o Parque da Raia, de nada valendo a celeridade que o promotor imprimiu às obras.
É que para o Direito não conta a política do facto consumado…
(Parte 2 de 2. Fim.)
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Ler a Primeira Parte. Aqui.
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A crónica de João Valente «Ilegalidade das Eólicas em Sortelha – A desmistificação das mentiras» é publicada em duas partes (nas quartas-feiras, dias 18 e 25 de Agosto).
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«Arroz com Todos», opinião de João Valente
joaovalenteadvogado@gmail.com