Nas nossas terras raianas, parte significativa da mostra gastronómica de raiz popular está nos enchidos, aqui anexos à matança do porco e ao aproveitamento de todas as suas partes. O bucho é o enchido de maior valor gastronómico e, por isso, aquele que melhor pode contribuir para a valorização económica da região.
Ler MaisEstá aí o tempo da castanha, das amoras silvestres, dos cogumelos e do fumeiro, produtos em que o concelho do Sabugal pode ter a excelência da qualidade e da inovação comercial.
De todos os subprodutos que a partir da carne de porco se fazem, O Bucho é aquele que maior carga social e comunitária tem. Cada porco só tinha 1 bucho (ou dois, bucho e a bexiga) por isso, o dia de comer bucho lá para Janeiro ou mesmo Fevereiro é mais um dia especial.
Ler MaisMesmo no dia da matança os rios continuam presentes na vida dos vizinhos que servem. Hoje, que está frio, servem para lavar as tripas do porco logo após a sua abertura.
Crónicas anteriores: Matança (1)… (Aqui.); Matança (2)… (Aqui.)
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(Continuação.)
O dia da matança era um dia cheio de acontecimentos, com parte deles perfeitamente definidos e encadeados no conjunto daqueles que constituíam a matança.
Por vezes antes do almoço, ou quando não se conseguia por falta de tempo, imediatamente a seguir, as mulheres deslocavam-se ao rio, na minha terra O Noémi, que nesta altura já vai grande, para fazerem a lavagem das tripas. Esta operação, exclusiva das mulheres, passava por despejar no rio o interior dos intestinos, do estômago e da bexiga do porco. Também se retirava um revestimento interior do intestino delgado, que era como que o forro das tripas dentro delas. Por norma tirava-se com a ajuda de uma cana.
Antes da ida ao rio ainda se desenrolava uma outra tarefa que passava por desenlear as tripas. Na altura em que o porco era aberto, a preocupação de quem executava essa tarefa era essencialmente retirar as entranhas e garantir que não ocorria qualquer descuido que pudesse por exemplo levar a um corte numa tripa.
Imediatamente a seguir era necessário desenlear as tripas. Embora muitos saibam mas certamente alguns não sabem, que as tripas estão envolvidas por um véu de gordura que é preciso retirar. Por outro lado, as tripas finas (intestino delgado) estão pegadas a um órgão interno do porco a que na minha terra se chama redanho. É preciso descolá-las do redanho antes da lavagem no rio.
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O redanho era destinado a fazer torresmos, e que bons que eram… De regresso à aldeia e com as tripas lavadas, era altura de fazer as morcelas que nalguns casos eram feitas com as tripas do porco. Noutros com tripas secas que se haviam comprado. Esta prática de lavar no rio as tripas, como de resto acontecia com a roupa, actualmente parece-nos condenável, mas não há memória de que alguma vez tenha prejudicado a qualidade da água do rio, ao contrário de outras práticas mais recentes e danosas.
Até parece que o rio, que existe para que as pessoas se possam dele servir, aceitava de bom grado estas práticas sem que com isso o eco-sistema fosse alterado. Não nos esqueçamos que a quantidade deste tipo de efluentes, incluindo a lavagem da roupa, comparativamente com o volume da água do rio, era diminuta e por isso nada que possa comparar-se às situações que todos temos condenado.
Depois do almoço os homens juntavam-se junto à lareira de uma casa exterior à da matança ou mesmo perto de uma fogueira que fizessem no cabanal e a tarde era passada a jogar à sueca. No final de cada jogo bebiam um copo, ajeitavam o lume e diziam por norma umas graçolas de duvidoso gosto para os padrões de hoje mas que, na época todos gostavam. As mulheres, na cozinha junto à lareira faziam as morcelas, a que já se fez referência neste órgão regional (aqui) onde se descreve em pormenor a forma como este petisco era feito. No final do dia o fumeiro já tinha as morcelas penduradas.
Naquele tempo, meados do século passado, nas comunidades rurais existia uma separação nítida entre tarefas que eram predominantemente executadas por homens e tarefas cuja responsabilidade de execução pertencia às mulheres. Morcelas era com as mulheres.
No dia seguinte à matança ou o mais tardar dois dias depois era altura de desmanchar o porco. Desmanchar o porco consiste em parti-lo em pedaços mais pequenos cada um com a sua utilidade e por forma a poder conservar-se. Havia regras para fazer essas tarefas por forma a preservar o melhor possível cada um dos subprodutos resultantes.
Com o porco ainda pendurado cortavam-se as duas patas da frente pela articulação imediatamente a seguir ao tarso. Estas patas iam de imediato para a salgadeira para se conservarem e destinavam-se a ser comidas mais tarde, no entrudo. As banhas e o véu que as cobre (e que foi retirado quando se desenlearam as tripas) também são retirados nesta altura e posição. São derretidas, originando a gordura que depois de solidificada se guardava para ser usada mais tarde na confecção da comida. Depois de derretidas as banhas, sobravam os torresmos. E que sabor que estes torresmos tinham…. diferente dos do redanho, mas igualmente saborosos.
O porco é então descido do chambaril e colocado no chão em cima de uma manta de trapos. Começa-se o desmancho pelo corte da cabeça, no pescoço imediatamente a seguir às orelhas a que se segue o rabo do animal.
Entretanto, com o porco voltado de barriga para cima são retirados os lagartos, a que hoje nós chamamos lombinhos quando vamos ao talho. Os lagartos ficam localizados na cavidade toráxica, na parte superior desta, quando o porco está na sua posição natural, imediatamente antes da junção das costelas com a coluna vertebral a que chamam espinha. São uma carne muito saborosa.
Com o corpo do porco já sem cabeça e rabo e com os lagartos retirados,é colocado de pé com o que resta das quatro patas no chão. Faz-se então um golpe longitudinal da cabeça até ao rabo pelo lombo do porco. Esse golpe deve chegar à espinha, por isso, por norma, embebe a faca toda.
Volta-se agora o animal ao contrário, isto é de barriga para o ar e com o malho partem-se as costelas, mas apenas as costelas, de um e outro lado da espinha. Com a faca conclui-se esta parte (não esquecer que nas costas do porco tinha sido feito um golpe longitudinal profundo) ficando o porco dividido em duas metades longitudinais.
Agora em cada uma das metades retiram-se as costelas inteiras (2) que depois disso se assemelham ao que chamamos entrecosto como o vemos no talho. Cortam-se em seguida os presuntos, e espáduas. O presunto é feito das patas de trás e as espáduas das da frente. Cada presunto é aparado sendo as aparas destinadas à preparação dos chouriços, às farinheiras ou mesmo para salgar.
Quanto às espáduas por vezes retira-se ainda o osso dos seu interior que servirá, depois de partido, para o bucho.
Depois de cortados os presuntos e as espáduas ainda sobrou do porco toda a parte do meio da barriga. Estes pedaços, são colocados na salgadeira pois às vezes têm entremeada e comiam-se ao longo do ano. Para a salgadeira iam igualmente os presuntos e a espáduas durante algum tempo, sendo totalmente cobertos de sal.
A salgadeira era uma caixa de madeira, tipo arca, por vezes compartimentada onde se conservava a carne do porco. Na altura não havia luz eléctrica, frigoríficos era coisa de que só se ouvia falar quando alguém vinha de terras distantes. Por isso, a forma de conservar este tipo de produtos era através do sal, na salgadeira.
Os ossos da espinha e da parte da frente junto à cabeça os da suã eram então destinados ao bucho ou no caso dos últimos e das costelas a serem colocados em vinha de alhos para consumo posterior ao longo do ano.
A cabeça do porco que tinha sido cortada antes era agora desossada. Esta tarefa passava por retirar o «coiro» até ao osso. Este coiro da cabeça é colocado na salgadeira coberto de sal e destinava-se a ser comido mais tarde por norma assado e a fazer lembrar os couratos que hoje se vendem junto aos jogos de futebol, nas barracas que por lá existem sempre.
Nota: Com o próximo texto concluir-se-á a descrição das tarefas relacionadas com a matança do porco, nas nossas terras. Claro está que não podíamos dar por finda esta tarefa sem falar em especial sobre um dos subprodutos da matança – O BUCHO. Mas isso acontecerá numa das próximas semanas. Até lá.
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«Do Côa ao Noémi», crónica de José Fernandes (Pailobo)
Na Raia da minha meninice, desconhecia-se a alheira, não por ser, se é verdadeira a lenda, uma criação dos judeus conversos, mas pela penúria de carnes esfoladias e a escassez de azeites, que só se colhiam para além de Santo Estêvão, ou mais especificamente nas terras que integraram o histórico e desaparecido Município de Sortelha.
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