Tendo as populações da Raia abandonado as aldeias e os campos com as searas amadurecidas, Massena não teve outro remédio que ordenar aos seus soldados que fizessem a ceifa para assim fazer face à extrema penúria do seu exército.

Já o dissemos antes: há duzentos anos, nestes dias de Agosto, os campos de Riba Côa estavam pejados de soldados franceses, preparando-se para atravessarem o Côa e avançar decididamente em Portugal.
O exército anglo-luso aguardava a ofensiva na margem esquerda do rio, observando os movimentos dos franceses, mas não esboçando o mínimo movimento de auxílio à praça de Almeida, que estava cercada e era flagelada pelos canhões. As tropas de Wellington estavam nutridas, sendo abastecidas regularmente por comboios de víveres vindos do sul, porém o exército de Massena passava por enormes privações, subsistindo com dificuldade.
Quando os franceses entraram em Portugal para a terceira invasão, no final de Julho de 1810, estavam a meia ração de pão e biscoito e as doenças, motivadas pelo calor excessivo, dizimavam muitos soldados. Não se poderia prosseguir com a incursão sem ser resolvido o problema do abastecimento das tropas, pelo que o marechal francês decidiu reunir recursos, enquanto prosseguia com o cerco de Almeida.
Os campos estavam cobertos de searas doiradas, mas não havia quem fizesse a colheita, porque os portugueses levavam a preceito as instruções de Wellington e da Regência no sentido do abandono literal dos campos para dificultar a subsistência do exército invasor. O capitão Guingret, que comandava um batalhão do 6º corpo do exército de Massena, descreveu no livro «Campanhas do Exército de Portugal» as dificuldades resultantes dessa política de terra queimada: «Os habitantes fugiam constantemente quando nos aproximávamos; abandonavam as suas casas para se refugiarem no meio das montanhas ou no âmago das florestas. Levavam sempre consigo os seus pertences e provisões de toda a espécie; levavam também o gado e antes de fugir tinham todo o cuidado de esconder e enterrar, nos lugares mais difíceis, tudo aquilo que não podiam levar. Se a nossa marcha rápida ou imprevista não lhes deixava tempo para construir ou cavar os seus esconderijos, lançavam para os poços, nos charcos ou nos rios tudo o que podia servir para alimentar o nosso exército.»
Face à situação, Massena resolveu que os seus próprios soldados procederiam à ceifa, à malha, à moagem e à cozedura do pão para abastecimento do exército. Para tanto mandou vir das imediações de Salamanca todas as foices que foi possível reunir, distribuindo-as depois pelos soldados. «Cada regimento tinha os seus ceifeiros, os seus debulhadores, os seus moleiros e os seus padeiros», escreveu o General Koch nas «Memórias de Massena». E o empenho foi tal que os soldados gauleses se espalharam, em grupos, pelos campos da raia, em toda a margem direita do rio Côa, tornando-se em camponeses zelosos, de foices e de manguais em punho. Outros dedicaram-se a reparar os moinhos junto às ribeiras, que os portugueses haviam desactivado, e a construir fornos ou a recuperar os que tinha cada aldeia.
O coronel Nöel, chefe do estado-maior do 6º corpo do exército francês, contou também nas suas «Memórias Militares de Um Oficial do Primeiro Império», como se deram os trabalhos no seu sector: «Estando o trigo ainda por colher, tomo a decisão de o colher eu mesmo, bater, moer e confeccionar o biscoito. (…). Mando que recolham as foices junto dos camponeses e mando fabricar manguais aos operários de artilharia e aos correeiros do comboio militar. Apodero-me de um moinho e consigo fabricar um excelente biscoito. Os camponeses julgavam que ao recusarem-se às nossas requisições escapariam a isso. ».
A azáfama foi tal na angariação das provisões para a subsistência do exército que os trabalhos do cerco de Almeida, nomeadamente a construção da trincheira e a instalação das baterias de artilharia, não avançavam ao ritmo pretendido: «mais de metade dos regimentos estavam a ceifar as searas ou a trabalhar nos moinhos e nas padarias», revelou ainda o general Koch.
Paulo Leitão Batista