Continuando a nossa deambulação pelos vestígios da arte popular e o património que daí se poderá encontrar nas nossas terras, vamos agora ao encontro dos instrumentos erigidos para a recolha de água para uso na rega dos campos agrícolas: as noras e as burras d’ógar.
Aquilino Ribeiro, porventura o maior dos escritores beirões, divulgador incansável da cultura do povo, descreveu, em páginas de sangue, os constantes conflitos entre a gente rude das aldeias, na sua maior parte motivados pela busca e divisória da água de rega, que era escassa: «Comunal em essência e direito é a água de rega, artigo de primeira nestas terrinhas altas e vãs, atormentadas pela seca, onde a maior percentagem de mortes e barulhos tem seu teatro à beira da poça ou dos talhadoiros de regar».
De facto, sem água a correr de maneira frequente, era impossível produzir bom renovo na horta. E, assim sendo, vinham tempos de muita provação, porque os povos viviam em quase total isolamento, sustentados por si próprios. Produtos alimentícios vindos de longe apenas o bacalhau e a sardinha, que chegavam à aldeia apilhando a sal. O resto era produto da terra, fruto do esmero que o íncola punha no trato dos agros. Assim se compreende que a falta de água pusesse transtornados os homens e motivasse ferozes disputas, quantas vezes de gravosas consequências.
Com o seu saber e à custa de muito suor, o campónio ergueu, a pouco e pouco, o sistema hidráulico que permitiu levar água às leiras de cultivo. Construiu açudes para domar e aproveitar a água que corria brava pelas ribeiras. Fossando a terra abriu poços e minas que foram de encontro aos veios subterrâneos. Nas encostas ergueu pequenos diques, que aprisonaram a água que se escapulia das nascentes à flor da terra.
Onde houvesse desnível era simples fazer chegar a água ao tornadoiro e enchupaçar a terra, mas o problema era alçá-la do fundo de um poço ou por desníveis sucessivos. Aqui o aldeão foi também prático e, à custa de algum engenho e muito esforço, levou a linfa às leiras.
Foram inventadas as burras d’ógar, que tiravam águas de poços ou rios, à custa da força braçal. O engenho, feito em madeira, tem outros nomes, variando conforme a terra: burra d’ ógar (augar ou ugar), ogadoiro, picota, picanço, cegonha, esteio, cambo (nos dois últimos casos tomando-se a parte pelo todo). São seus componentes: o esteio, gacha ou galhada (pau bifurcado com a base enterrada no solo); o cambo ou travessal (pau móvel); o eixo do esteio (ferro que atravessa a bifurcação para segurar o cambo); o contra-peso (pedra que é presa a uma das extremidades do cambo); a vara, cambão ou vareiro (pau que se suspende da extremidade do cambo e onde se dependura o balde).
O aparelho invadiu literalmente os campos. Onde houvesse horta regadia, lá estava o cambo na vertical, esperando que braços musculosos o fizessem girar e ir à busca da água. Pegando na vara o manobrador fazia-a descer ao fundo do poço, onde o balde era mergulhado, sendo depois alçado, aqui em tarefa facilitada, dado o papel da pedra que na outra extremidade do cambo fazia de contrapeso. Porém para o seu funcionamento contínuo era necessário muito esforço, ou seja, sendo útil para uma pequena rega, era manifestamente insuficiente para encharcar batatais e milharais de grande extensão.
A nora, ou roda, é outro dos dispositivos ancestrais, vindo dos tempos da ocupação árabe, segundo os estudiosos da matéria. Trata-se de um rodízio com copos de latão, também chamados alcatruzes, que descem ao fundo do poço, subindo cheios de água, que despejam para uma masseira. O engenho é puxado por animal de tiro, vulgarmente vaca ou burro, que é ligado pelo cachaço à engrenagem através de um cambão de madeira. Andando à volta, em movimento contínuo, quase sempre com uma venda nos olhos para se não espantar ou entontecer, o animal faz girar a engrenagem e esta, através de um veio de ferro, faz tocar o rodízio com os alcatruzes suspensos sobre o poço. Da masseira a água passa para uma calha e desta à regadeira, que por sua vez a transportará às leiras do renovo.
Para se instalar uma nora era necessário proceder-se a obras de vulto, desde o empedrar do poço, até à construção de um muro circular, na forma de batorel, que visava dar altura, para que dali a água escorre-se em declive.
Fazia parte do bucolismo de antigamente o suave chiadouro das noras rodando nos dias quentes de verão. Os animais giravam em caminhada sem fim, sob o olhar atento de um petiz, a quem cabia garantir que o engenho não parasse.
Milhares de noras e de burras d’ógar foram instaladas nos baixios, com as quais, durante séculos, o povo regou as courelas e delas tirou o sustento. Com o evoluir dos tempos e das tecnologias, foram, a espaços, substituídas pelos também já caducos motores de rega, movidos a petróleo. Depois, os campos foram votados ao abandono, em resultado da grande abalada das gentes para França e Aragança e da derrota que teve a nossa lavoura face à de outros países, que para nós passaram a produzir e a vender. Das picotas já pouco resta, dado o perecimento da madeira. Das noras, quedaram apenas, como raro vestígio, rodas e alcatruzes oxidados, esperando que o tempo os leve de vez da nossa paisagem.
Paulo Leitão Batista