«D. Ermelinda arranjara a ceia: uma ceia de caldo verde e sardinhas assadas, raras naquela região e muito frescas, – nem que Nagosa fosse um braço de mar e as houvessem ali pescado nesse instante… No fim, para assentar, chá, – um chazinho de cidade, loiro e aromático, dando a nota apurada da civilização após aquele menu de cavadores.»
A citação é extraída do conto «Sr Anselmo», inserto no volume «Aquela Família…», de Ladislau Patrício, que retrata em breves e magistrais pinceladas o «perfil grotesco dum provinciano ilustre». Era Outono, de Lisboa chegara a notícia de que estalara a revolução que apeou a Monarquia o que muito perturbou Anselmo que viveu o dilema de antever qual era o melhor partido a tomar nessa hora crítica. Passa-se a acção em Nagosa, freguesia do concelho de Moimenta da Beira, onde o fidalgo dirigira os trabalhos da vindima e vigiava a fermentação do vinho no lagar.
Mesmo rico, e agarrado aos esmeros da boa mesa, não dispensou Anselmo a degustação de um sabor bem popular: caldo verde e sardinhas assadas. Comida própria dos trabalhos das colheitas, no fim do Verão. Manjar dilecto de camponeses, apetitoso à hora do almoço, no intervalo das fainas, quando uma tarde inteira de labuta levava a uma digestão a compasso.
E pegamos outra vez num trecho do livro para vermos como ficou o nosso homem rico e inactivo com as sardinhas que emborcara à hora da ceia:
«Havia lua cheia.
Anselmo antes de se ir deitar saiu para o terraço da casa a respirar um pouco, à vontade. Arrotou. As sardinhas vieram-lhe à boca. Murmurou arreliado:
– A mania de comer a esta hora há-de acabar.
Sentou-se num banco, à fresca, de colete desabotoado e a fumar.»
Figura prestigiada da cidade da Guarda, Ladislau Fernando Patrício, ali nascido em 1883, foi médico, tornando-se conhecido como director do Sanatório Sousa Martins, e pelo trabalho prestado no Hospital Francisco dos Prazeres e no Lactário da cidade. Com gosto pelas letras, cedo iniciou colaboração nos jornais da região, que com os alvores da República proliferaram na cidade. Também se distinguiu como ensaísta e conferencista, escrevendo em revistas científicas e intervindo em congressos de medicina.
Cunhado do poeta Augusto Gil, de quem seria biógrafo, a sua dedicação às letras teve especial expressão nos livros que escreveu sobre medicina. Tisiólogo com forte ligação à cura da tuberculose, doença que avassalava o país, escreveu o livro «O Bacilo de Koch e o Homem», integrado na colecção editorial Biblioteca Cosmos, dirigida pelo matemático Bento de Jesus Caraça. O livro tornou-se numa referência no estudo da tuberculose em Portugal.
Mas a sua produção literária foi mais longe, e abrangeu a poesia e a ficção, aqui se destacando os contos e as peças de teatro. Os seus livros têm por pano de fundo a Guarda e as suas gentes, abordando temas populares, testemunhando as vivências desse povo humilde que ele tão bem conheceu no hospital e no consultório.
Os contos retratam pequenos episódios provincianos, onde se enaltece ou caricatura o homem rústico. São textos de sabor popular, onde impera a singeleza das coisas. Textos que se lêem de uma penada e pelos quais se entende melhor este povo de antanho que um homem da cidade observou, sentindo suas as misérias materiais e conhecendo a riqueza de do seu querer e do seu saber.
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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