O programa anual das actividades do Clube de Leitores da Biblioteca Eugénio de Andrade do Fundão, além das sessões mensais em que se debate e analisa a obra de um escritor de língua nacional ou estrangeira, inclui uma viagem às raízes de um autor português.
Ler MaisNenhum escritor português ganha a Eça de Queirós nas referências à nossa cultura gastronómica. Os seus fascinantes textos em prosa abordam recorrentemente a importância do alimento na cultura humana. O comer e o beber são facetas da vida social a que Eça dá presença. Na ficção como nos textos jornalísticos, e mesmo na correspondência, encontramos sucessivos louvores à nossa gastronomia tradicional.
O creme queimado de «A Cidade e as Serras», a sopa juliana e a cabidela de «O Crime do Padre Amaro», o bacalhau com pimentos e grão-de-bico do «Fradique Mendes: Memórias e Notas», a sopa seca e os ovos com chouriço de «A Ilustre Casa de Ramires», são referências obrigatórias para qualquer compilação das receitas literárias queirosianas.
Mas nenhuma das ementas retiradas dos seus livros chega, em estilo e em grandeza, às receitas do caldo de fígado e moelas e do arroz de favas, vertidas nas páginas de «A Cidade e as Serras». É de um enquadramento deslumbrante.
O fidalgo Jacinto chega do luxo de Paris para visitar a sua quinta em Portugal, que mandara sujeitar a obras. Rodeado de confortos, viajou de comboio e aportou na estação de Tormes, onde, inesperadamente, ficou despojado das bagagens, que não chegaram a ser descarregadas, apenas com a companhia do amigo e confidente Zé Fernandes (o narrador), que com ele viajara. Outros desacertos os impediram de se alojarem no solar e, desesperados, acabam por ser conduzidos à pobre mas remediada habitação do caseiro da quinta, o Melchior, que abnegadamente os alimentou e acomodou.
A fome imperava quando os caseiros os levaram à mesa, no meio da maior das humildades, fazendo o melhor pelo fidalgo. Zé Fernandes temeu o pior: aquela alma não estava habituada a outra coisa que não fosse a requintada comida parisiense, rodeada de asseios e aparências, que ali faltavam. A franqueza era muita e louvável, mas a carência e a simplicidade da casa popular portuguesa não deixavam qualquer esperança. O Jacinto sucumbiria à falta dos luxos e dos sabores divinais a que estava habituado. Mas puro engano. A cozinha tradicional portuguesa fez o milagre.
«Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro e a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e recendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: – “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
– Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
– Óptimo!… Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!»
«Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
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