Outros tempos! Quando o Bairro Alto era um carrossel de emoções, poiso de gente de trabalho e também de convívio… nas tertúlias, nas livrarias (e nos alfarrabistas), no fado e nos restaurantes; nos jornais e no resto…

Durante largos anos (mais de quatro décadas) trabalhei na Travessa da Queimada. No mesmo prédio, mas na Rua do Diário de Notícias, havia uma casa de fados (Adega Mesquita). Estava a bulir, à noite, e a ouvir fado… O velho Mesquita e a tia Adelina (os donos) deixavam-me escutar os meus fadistas preferidos.
Nos intervalos das cantorias, fadistas e guitarristas atravessavam a rua para tomar café no restaurante Vá-e-Volte; que nós (do jornal) também frequentávamos. E assim fiz amizade com alguma desta gente que a tocar e a cantar ganhava a vida. Destaco dois fadistas que muito apreciava: o Pavia cantava muito bem a «Igreja de Santo Estêvão»; e a Maria Inês tinha (tem) uma bela voz e continua ligada ao fado. Tantas vezes saí a correr «só» para ouvi-la cantar um fado de que gostava («são jovens/como nós também já fomos»). Sentado no fundo da sala, ninguém sabia – mas eu sabia que ela cantava «só» para mim…
Quem (como eu) passou décadas a calcorrear o Bairro Alto, não pode deixar de estranhar quando agora visita aquela zona da cidade. Não se trata de saudosismo – é o verificar que a (minha) geografia sentimental foi abalada. O mundo é composto de mudança (eu sei), mas não houve desenvolvimento harmonioso. A pressão imobiliária e o turismo sem regras destruíram parte da «alma» da cidade.
Num destes dias, apeteceu-me caminhar um pouco pelo Bairro Alto; matar saudades de um espaço que me deixou marcas. O restaurante Cantinho das Gáveas mantém-se (tantas conversas soltas com o Carlos Rias…); a Maria Inês continua a cantar o fado (agora mais para turistas). A páginas tantas, pensei: «nunca mais aqui volto». Mas se calhar não é bem assim… Voltarei sempre, nem que seja só para abraçar e ouvir a Maria Inês. Sei que ela vai cantar, só para mim, «aquele» fado de que tanto gosto…
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«Estas coisas da alma», crónica de Manuel Sequeira
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