Mesmo pertinho do portão do nosso curral estava o estendal das partidas. Era uma corda esticada que ia de um lado ao outro da rua. Suspensos dela havia um cântaro cheio de serradura; outro cheio de água; um galo metido num saco com as patas atadas; um naco da pata de um presunto; um pipinho de vinho; talvez mais qualquer coisa de que não tomei nota, pois eu detestava aquilo. E lá vinham os foliões de olhos vendados e cacete na mão a tentar acertar em cheio no pobre galo ou no pedaço de presunto! O pior é que era bem mais fácil acertar num banho de água fria ou num «empoeirar» de serradura.

Mais ao largo havia um casamento com as mais loucas fantasias. Uma mulher fazia de noivo, vestida de fato completo, com gravata e barbas desenhadas a carvão; um homem de barba rija era a noiva de vestido branco e sapato fino.
A banda que seguia o cortejo, tinha instrumentos de canas; as violas eram de tábua e sem cordas; os testos eram os pratos; umas caixas de papelão serviam de tambores…. E tudo ria e folgava pelos quatro cantos da aldeia.
Também não faltou o encerro de toiros a fingir, seguido da capeia.
Eu, que tanto adorava correr e brincar, naquele dia era escusado mandarem-me a fazer fosse o que fosse do portão para fora.
Na terça-feira de Entrudo era dia de bucho e vagens secas. Não podia sobrar nada, nem na gaveta da mesinha pequena. Também não se podia oferecer a ninguém, pois todos tinham de fazer jejum durante a Quaresma. Mesmo quem tinha bula não podia comer carne na quarta-feira de cinzas, em cada sexta-feira e na semana da Paixão. Por isso, comia-se tudo sem deixar restos.
Acho que a Quaresma era o tempo mais importante na vida da minha Aldeia. Muito mais importante, ainda, que o Advento para preparar o Natal.
A Quaresma era tempo de cânticos em latim, que ninguém percebia, mas todos sabiam de cor. Cantavam-se em surdina, durante os serões, enquanto se davam mais algumas das vinte voltas ao linho ou se faziam mais uns pares de meias de algodão para os últimos dias de invernia. Toda a gente falava baixinho, não se entoavam cantigas alegres; as crianças não faziam alvoroço nem brincadeiras de rua. Não havia bailes aos domingos, no adro da igreja, mesmo que fosse um lindo dia de sol; Até as gargalhadas eram proibidas por respeito da morte de Jesus.
As imagens da igreja eram todas cobertas de roxo, em sinal de luto.
Ao entardecer fazia-se a Via-Sacra. As campainhas da missa eram substituídas por matracas. Havia um não sei quê de mistério e dor que a pouco e pouco dava lugar a muita euforia.
Depois era um ressuscitar de vida! Era uma alegria ímpar. As casas e a igreja enfeitavam-se de flores. Ia-se à ribeira a arear as panelas; esfregavam-se todas as tábuas do soalho da casa com sabão e carqueja; barravam-se as chaminés; pintavam-se as latas que serviam de vaso às flores das varandas; iam fazer-se as bicas e outros bolos às padarias de Navas Frias. Nem os guardas tiravam o pão e os bolos a quem quer que fosse!…
E as primas poderiam vir de férias se o tio recebesse o dinheiro do seu trabalho para lhes poder pagar a viagem!
:: ::
«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
:: ::
Leave a Reply