O tempo é de facto algo estranho. Proporciona-nos momentos marcantes de alegria, mas se quisermos até conseguimos esquecer as tristezas. Pelo menos comigo é assim.

Tenho um retrato na sala. Tem tantos anos como o nosso casamento. Sim, já passámos os 30 anos e, quem sabe, acredito que cheguemos ao meio século.
Porém, quando olho para o retrato, tenho mais dificuldade em o ver. O corpo humano vai envelhecendo e os órgãos vão perdendo a sua «força» ou vitalidade. Acredito que estejam a chegar as cataratas, não as do Duque de Bragança, ou actualmente Calandula, onde a força do rio Lucala, o mais importante afluente do Kuanza, até nos lava a vista tal é o vapor provocado pela água ao cair em rocha mais quente.
Mas estas cataratas são diferentes. O meu cristalino está a envelhecer e a transparência vai progressivamente desaparecendo.
Mas não deixa de ser interessante. A foto é a mesma, mas sou eu que com o tempo vou a vendo escurecer. Acabo por arranjar uma bitola para aferir o meu campo de visão e procurar entender como estas cataratas oculares estão a evoluir.
O mundo escurecido não é assim tão mau. Adormecemos mais depressa, lemos mais devagar o que nos obriga a uma concentração maior, a televisão definitivamente é apagada porque na verdade, nos dias de hoje, não sinto interesse em nada, porque os «senhores comentadores» falam como os antigos vendedores do mercado, procurando baralhar-nos com o preço e atendendo vários clientes ao mesmo tempo. A velocidade de debitarem palavras será a da tal Inteligência Artificial? Talvez, porque os que ainda consigo entender, na verdade, raciocinam como eu. E nem preciso de olhar. Basta ouvir!
Com os audiolivros, o retrato deixou de ser um problema para mim. Olho-o, mas vou ouvindo a descrição do livro linha a linha, parecendo que que o retrato ganha vida. Não deixa de ser interessante e até incrível: sucintamente o retrato está a relatar-me o livro. É como um pequeno ecrã de televisão, em que as imagens até se podem mexer, mas o diabo desta maleita não me ajuda, o que permite imaginar toda a estória com um outro encanto.
O tempo volta outra vez a ir passando. E os lapsos de memória vão surgindo, principalmente os nomes: mesmo debaixo da língua, como é mesmo? Pacheco? Não Pascoal! Vá lá foi por pouco. Mas o que de facto é interessante é que já não me lembro mesmo que foto está nesta dita moldura, sendo o meu farol apagado que me ajuda a ter a cabeça levantada, para manter a coluna direita.
Penso refletidamente e não me consigo lembrar. Ainda procurei debaixo da língua, ou atrás das orelhas, mas nada me vinha à mente. Será que tenho de andar estes cinco metros para o ver com a lupa?
Ainda reflito num derradeiro esforço. Quem está lá? Foi onde? Em que data? Só sei que é um retrato.
Concentro-me nas forças para me levantar e vou curioso, porque ansioso era noutros tempos, ver que retrato é este.
Com a ajuda da lupa na mão esquerda e o retrato na direita só podia mesmo exclamar!
Malditas cataratas. Escurecem-me as outras cataratas: a vista maravilhosa de Calandula.
Kuito, 28 de Maio de 2025
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«No trilho das minhas memórias», crónica por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Mais um belo texto com os toques irreverentes do amigo Alçada.