O falecido Papa Francisco deixa aos crentes e aos não crentes um extraordinário legado. Simples, humilde e despojado face aos poderosos, Francisco foi um Papa próximo dos pobres e dos mais vulneráveis e foi a voz dos que não têm voz. Por outro lado, pela sua intervenção constante e determinada a favor dos valores universais e dos direitos fundamentais da humanidade, foi ao longo do seu pontificado uma das figuras mais representativas e mais marcantes daquilo que poderá designar-se como «a consciência do mundo». Após a eleição do seu sucessor, a humanidade olha agora para Leão XIV com renovada esperança num Mundo melhor.


Os gestos simbólicos de Francisco
Os gestos simbólicos que o Papa Francisco praticou ao longo do seu pontificado deixam-nos uma memória impressiva do seu legado pelo grande significado de alguns deles: a visita a Lampedusa, em solidariedade com milhares de migrantes em busca de melhor vida na Europa; o lavar dos pés aos presos de Roma nas Quintas-Feiras Santas; o «Fiat 600» que escolheu para se deslocar entre dezenas de limousines na sua visita aos EUA; a oração solitária e solidária na Praça de São Pedro em plena crise da pandemia Covid-19; o amistoso abraço a tantos líderes de outras confissões e de outras religiões, em particular ao Patriarca Ortodoxo de Constantinopla – Bartolomeu I – que fez questão de estar presente nas cerimónias do funeral do Papa Francisco a 21 de Abril, ou ao Grande Imã de Al-Azhar-Ahmad Al-Tayyeb na assinatura conjunta da «Declaração sobre a Fraternidade Humana em Prol da Paz Mundial e da Convivência Comum», em 4 de fevereiro de 2019; as viagens apostólicas realizadas em todos os continentes do Mundo (Europa, África, América, Ásia, Oceânia); a atenção particular dada por Francisco aos jovens espalhados pelos quatro cantos do mundo, designadamente durante a Jornada Mundial da Juventude, realizada em Lisboa, em Agosto de 2013.
A reorganização interna da Igreja
Por outro lado, no que respeita à organização interna da Igreja Católica, vale a pena ilustrar alguns dos exemplos mais marcantes da intervenção do Papa Francisco.
Durante o pontificado de Francisco, os Sínodos foram um importante instrumento do Papa Francisco para abrir debates em temas fraturantes, bem como para recuperar a sinodalidade dos primeiros tempos da cristandade. Assinale-se que, depois do Concílio Vaticano II, na década de 60, o Papa Paulo VI já tinha procurado ressuscitar esta ideia da sinodalidade, quando criou o «Sínodo dos Bispos», um órgão de aconselhamento do Papa no qual têm assento bispos de todo o mundo, e que se reúne periodicamente, com composições variáveis para se debruçar sobre diferentes matérias de organização interna da Igreja.
Entretanto, durante o pontificado de Francisco nas assembleias deste «Sínodo», deixaram de ter voto apenas os bispos. Dezenas de leigos, tanto homens como mulheres, foram também chamados a participar de igual para igual nessas assembleias em Roma, tendo direito de voto a par com bispos e cardeais. E, em 2020, Francisco foi ainda mais longe ao convocar um «Sínodo sobre a Sinodalidade», um fórum de discussão para a Igreja debater o seu próprio modo de tomar decisões. Nesse processo, Francisco quebrou quase todas as regras anteriores. Em vez de uma simples assembleia de três semanas no Vaticano, o Papa quis abrir o sínodo a todos os católicos do mundo, promovendo um longo processo de escuta em várias fases, a começar nas paróquias e movimentos e que culminar em duas assembleias gerais em Roma (2023 e 2024), processo este que tem sido descrito como o mais amplo processo de debate e de auscultação alguma vez levado a cabo na história da cristandade.
No quadro da designação de leigas e leigos como membros de pleno direito do «Sínodo dos Bispos», Francisco nomeou em 2021 uma mulher, Nathalie Becquart, religiosa francesa que pertence à congregação La Xavière, para o cargo de subsecretária do «Sínodo dos Bispos». Entretanto, o Papa nomeou outras mulheres para altos cargos na Cúria Romana: a governadora do Estado da Cidade do Vaticano, Raffaella Petrini, que foi a primeira mulher a ocupar este cargo na história e, em Janeiro passado, Francisco nomeou Simona Brambilla para chefiar o «Dicastério» (ou seja, o Ministério) para a «Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica», tendo sido a primeira mulher a liderar um dicastério da Cúria do Vaticano. Importa, por outro lado, destacar a ação decisiva do Papa Francisco quanto à responsabilização efetiva dos membros do clero que praticaram crimes de abuso sexual bem como à assumpção pública das suas consequências por parte da Igreja, designadamente em matéria de cooperação com a Justiça e da reparação moral, social e económica das vítimas desses abusos.
As palavras de Francisco
Mas as palavras dirigidas pelo Papa Francisco aos crentes e aos não crentes de todo o planeta foram também um importante legado deixado à humanidade. Algumas gravou-as nas suas Encíclicas e Cartas Apostólicas. À luz do Evangelho, Francisco convidou os crentes a «sair dos templos e ir até às periferias»; e, face ao horror dos abusos sexuais e do seu encobrimento, verberou «o clericalismo que destrói a Igreja»; na Encíclica «Laudato si» Francisco defendeu o imperativo da humanidade de cuidar da «Casa Comum» e desenvolveu o conceito de ecologia integral; e na Encíclica «Fratelli Tutti» proclamou a necessidade de construção da «fraternidade universal»; perante tantos conflitos e guerras que sempre nomeou sem eufemismos, Francisco afirmou várias vezes que «não há guerras justas» e que «a guerra é sempre uma derrota da humanidade».
A este respeito, importa salientar o empenhamento constante do Papa Francisco para que a Igreja viva preocupada e ocupada com as questões da sociedade: a pobreza, os descartáveis, os migrantes, as guerras e as vítimas das guerras, a ecologia integral, o diálogo inter-religioso e a eliminação da «economia que mata». Francisco via a Igreja como «um hospital de campanha, de saída, não virada para si mesma, mas para o Mundo com os seus problemas».
E assim não admira que entre as palavras mais marcantes deste Papa conste também a frase dita em Lisboa durante a Jornada Mundial da Juventude. Vale a pena citar essa frase na íntegra e não apenas no mero sound bite: «Na Igreja há espaço para todos. Assim como somos. Todos. Jesus di-lo claramente. Quando manda os apóstolos chamar para o banquete daquele Senhor que o preparara, diz: “Ide e trazei todos”, jovens e idosos, sãos, doentes, justos e pecadores. Todos! Todos! Todos!»
Convém ainda chamar a atenção para o último livro de Francisco «A Esperança Nunca Desilude: Peregrinos para um Mundo Melhor» escrito para o «Jubileu da Esperança 2025» e publicado a 19 de Novembro de 2024. Neste livro, o Papa fala sobre diversos temas de grande atualidade, designadamente as migrações, as guerras na Ucrânia e em Gaza, a crise climática e a construção da paz no Mundo.
De facto, pela sua intervenção constante e determinada a favor dos grandes valores universais e dos direitos fundamentais da humanidade, o Papa Francisco foi, ao longo dos 12 anos do seu pontificado, uma das figuras mais representativas e mais marcantes daquilo que poderá designar-se como «a consciência do mundo».
Um jornalista perguntou certo dia ao Papa Francisco: «Como gostaria de ser recordado depois de morrer?» E Francisco respondeu textualmente com estas palavras: «Era um bom homem e fez o que pôde.»
Estou convicto de que, agora que Francisco partiu, a melhor homenagem que qualquer crente ou cidadão do mundo lhe poderá prestar, será procurar agir nas suas respetivas condições de vida para que, quando partir, possa ser recordado da mesma forma: «Era uma boa pessoa e fez o que pôde.» Dessa forma contribuirá para a construção de um Mundo melhor.

As congregações gerais dos cardeais antes do Conclave
Entretanto, a julgar pelas sínteses enviadas pelo departamento de imprensa do Vaticano, sobre as Congregações Gerais que decorreram em Roma após o funeral do Papa, as discussões que tiveram lugar foram impregnadas de uma linguagem e de um discurso muito próprios do pontificado de Francisco.
Na décima Congregação Geral, que aconteceu na manhã de 5 de Maio, «o foco esteve na natureza missionária da Igreja: uma Igreja que não pode fechar-se em si mesma, mas sim acompanhar cada homem e cada mulher rumo à experiência viva do mistério de Deus. O perfil do futuro Papa também foi discutido: uma figura que esteja presente, próxima, capaz de ser uma ponte e um guia, de favorecer o acesso à comunhão de uma humanidade desorientada, marcada por uma crise da ordem mundial, um pastor próximo da vida real das pessoas», lê-se no resumo dessa síntese.
Noutra das sessões, foi chamada a atenção para «o risco de a Igreja se tornar auto-referencial e perder a sua relevância se não viver no mundo e com o mundo». Num outro comunicado, o Vaticano disse que os cardeais discutiram como a «evangelização esteve no centro do pontificado do Papa Francisco» e se debruçaram sobre a capacidade da Igreja de falar «especialmente às gerações mais jovens».
A 6 de Maio, realizou-se a última reunião de 173 cardeais, dos quais apenas 133 foram eleitores. Segundo o comunicado emitido pela Santa Sé, os cardeais concordaram sobre as reformas promovidas pelo Papa Francisco que precisam de ser continuadas, designadamente a luta contra os abusos sexuais na Igreja, a transparência económica, a reorganização da Cúria, a sinodalidade, o compromisso com a paz e o cuidado com a «Casa Comum».
O texto acrescenta ainda que foi traçado o perfil do próximo Pontífice: «Um Papa pastor, mestre de humanidade, capaz de encarnar o rosto de uma Igreja samaritana, próxima das necessidades e das feridas da humanidade.» Os cardeais acrescentaram ainda que «em tempos marcados por guerras, violência e fortes polarizações, sente-se fortemente a necessidade de um guia espiritual que ofereça misericórdia, sinodalidade e esperança». E, «entre as urgências pastorais, foi também reafirmado o compromisso de enfrentar com decisão as alterações climáticas, reconhecidas como um desafio global e eclesial».
A reunião terminou com a leitura de uma declaração oficial, em que foi feito pelos cardeais um apelo à paz, a um cessar-fogo permanente e ao início de «negociações que conduzam a uma paz justa e duradoura, no respeito pela dignidade humana e pelo bem comum».
Olhando para estes sinais, parecia assim existir uma tendência no sentido da continuidade em relação ao legado do Papa Francisco e do seu pontificado reformista. De facto, nos últimos doze anos, Francisco procurou implementar um conjunto de reformas e transformações cuja origem pode ser justamente encontrada no Concílio Vaticano II dos anos 60: a ideia de uma Igreja mais horizontal, onde todos participam nos processos de decisão, e menos assente numa hierarquia absoluta onde o clero surge como uma casta ou uma elite, acima dos fiéis comuns, ganhou corpo especialmente nos últimos anos do pontificado de Francisco, com o Sínodo sobre a Sinodalidade, atrás referido.
Como tem defendido o teólogo checo Tomáš Halík, o pontificado de Francisco inaugurou uma nova forma de a Igreja se relacionar com o mundo: se, desde o século XIX, a Igreja, vendo-se a perder o seu poder terreno, procurou encastelar-se numa posição de condenação frontal do mundo moderno (com a moral sexual como principal bandeira), nesta nova era pós-moderna, a Igreja precisa de saber «encarnar os valores do evangelho no estilo de vida e de pensamento dos povos».

A eleição do novo Papa Leão XIV
Afinal o Conclave acabou por ser um dos mais breves dos últimos cem anos. Ontem, ou seja, um dia depois do início desta magna reunião de 133 cardeais da Igreja Católica, foi eleito um novo Papa – Robert Francis Prevost – que escolheu o nome de Leão XIV.
Robert Francis Prevost nasceu a 14 de setembro de 1955, na cidade norte-americana de Chicago, no seio de uma família descendente de imigrantes. A mãe, Mildred Martínez, tinha ascendência espanhola, trabalhava como bibliotecária e envolvia-se muito nas atividades da paróquia local. Duas das suas irmãs eram freiras. O pai, Louis Marius Prevost, tinha origem franco-italiana e, apesar de mais discreto na paróquia, dava catequese. Robert Francis Prevost e os dois irmãos cresceram envolvidos na paróquia, frequentando até a sua escola e servindo como acólitos na missa.
Aos 22 anos, já depois de frequentar o seminário, Robert Prevost licenciou-se em Matemática. Ingressou entretanto na Ordem de Santo Agostinho (que se rege por princípios de pobreza, obediência, desapego do mundo, repartição do trabalho e caridade) e começou a dar aulas de matemática em part-time na escola de Mendel, a mesma escola da paróquia onde estudou em criança. Depois de ser ordenado padre, Robert Prevost foi enviado em missão para o Peru, em 1985, para a prelatura de Chulucanas, no sopé dos Andes. Dois anos depois ser-lhe-ia pedido que regressasse a Chicago — mas, em 1988, o padre Prevost voltou para o Peru. Agora já não como missionário no chamado Perú profundo, mas sim como diretor do seminário de Trujillo, a terceira maior cidade do país. Pelo meio foi pároco, professor e bispo, grande parte desse tempo em Chiclayo. A ligação ao Peru, que durou cerca de 20 anos, fortaleceu-se de tal forma que Robert Prevost adquiriu a cidadania peruana em 2015.
Robert Prevost foi nomeado cardeal em 2023 pelo Papa Francisco, que conhecera pessoalmente em 2018, quanto o Papa visitou o Peru, tendo sido entretanto nomeado como Prefeito do Dicastério para os Bispos – um importante cargo no Vaticano, que lhe permitiu supervisionar as nomeações de bispos de todo o mundo e conhecer a «máquina do Vaticano por dentro».
Aqueles que conheceram o cardeal Robert Prevost, descrevem-no como um homem na linha de Francisco, no sentido da proximidade com os fiéis. Nas suas declarações públicas enquanto cardeal, Prevost sublinhou a necessidade de uma Igreja próxima das pessoas, dizendo: «Não é suposto o bispo ser um pequeno príncipe sentado no seu reino. É antes chamado a ser humilde, a estar junto das pessoas a quem serve, a caminhar com elas, a sofrer com elas.» Aliás, em 2023, o então cardeal fez questão de declarar: «Continuo a considerar-me um missionário.»
Iacopo Scaramuzzi, vaticanista do jornal «La Repubblica», chegou mesmo a classificar o novo Papa como «o menos americano dos americanos» no conjunto dos cardeais dos EUA que estiveram no Conclave. Não por acaso, nas suas primeiras declarações enquanto Papa, Robert Prevost (que fala cinco línguas: inglês, espanhol, italiano, francês e português e consegue ler latim e alemão) decidiu não usar a sua língua materna, o inglês, mas sim falar em espanhol e italiano, tendo deixado uma mensagem especial para a sua «querida diocese de Chiclayo».

O que se espera do Papa Leão XIV
Leão XIV terá uma missão duplamente espinhosa. Suceder a uma figura profundamente carismática como Francisco será sempre uma tarefa difícil e sujeita às inevitáveis comparações. Acresce que o pontificado de Francisco deixou muitos processos em aberto, muitos debates por continuar e muitas reformas por implementar.
Todavia, tendo em conta o seu anterior percurso eclesiástico, bem como o seu discurso de apresentação como Papa à multidão de fiéis que ontem encheram a Praça de São Pedro, tudo indica que o seu caminho apostólico se caracterizará em boa medida pela continuidade do magistério do Papa Francisco com o qual aliás teve um contacto muito próximo na Cúria Romana e ao qual se mostrou agradecido em nome da Igreja. Também a referência explícita à necessidade de continuar o movimento da «Igreja Sinodal», de abertura aos outros e de serviço dos pobres foram elementos fortes deste seu primeiro discurso.
Porém, isto não significa que Leão XIV seja uma espécie de Francisco II. Leão XIV tem obviamente um estilo e uma personalidade diferentes do Papa Francisco, como, alias, se viu designadamente pela forma como apareceu vestido com uma romeira vermelha sobre a batina branca, bem como pela sua linguagem gestual e pela sua postura mais contida.
Porém, o facto de o novo Papa ter adotado o nome de Leão XIV parece significar que esta escolha se inspirou na conhecida figura do Papa Leão XIII, cujo pontificado decorreu entre 1878 e 1903 e que se notabilizou pela definição da chamada «doutrina social da Igreja», designadamente na célébre Encíclica «Rerum Novarum» na qual defendeu os direitos dos trabalhadores e condenou os excessos do capitalismo do período da Revolução Industrial que então a Europa atravessava, bem como as teses então emergentes do marxismo e da luta de classes.
Leão XIV parece, assim, sinalizar que o seu pontificado combinará firmeza doutrinal e o chamamento à unidade e à proteção da Igreja contra as divisões (Leão significa «força») num momento em que o Mundo em que vivemos se encontra em enorme confusão, ao mesmo tempo que, seguindo os passos de seu predecessor Leão XIII, procurará promover a harmonia não só entre as classes sociais e entre as pessoas em geral, mas também entre as nações. E em favor do bem comum da humanidade.
Não por acaso, a principal mensagem do novo Papa dirigida à multidão ontem reunida na Praça de São Pedro começou com a saudação: «A paz esteja com todos vós!» Esta mensagem de paz, de «uma paz desarmada e desarmante» foi repetida várias vezes durante o seu breve discurso à multidão durante o qual Leão XIV pareceu emocionar-se, mas se mostrou empático, seguro e clarividente.
Na verdade, na situação preocupante que o Mundo atravessa, Leão XIV perfila-se como alguém que será capaz de construir pontes de diálogo, não apenas entre as várias sensibilidades da Igreja e de outras confissões religiosas, mas também entre hemisférios – Norte e Sul – entre continentes, e mesmo entre poderes hegemónicos e imperiais conflituantes que parecem estar a ressurgir e a fomentar de forma crescente a «guerra mundial aos pedaços», de que falava o Papa Francisco.
A verdade é que o Mundo precisa de esperança. E olha agora para Leão XIV com otimismo e renovada esperança num Mundo melhor.
Bruxelas, 9 de Maio
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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