Nas minhas deambulações virtuais, deparou-se-me um «Postal» de Luís Osório, datado de 7 de março de 2020, que fala de um homem que muito estimei – António Santos Neves – , antigo jornalista (e subdirector) do jornal «A BOLA». Uma história bonita que me surpreendeu (em parte). Com a devida vénia, vou partilhá-la…

Santos Neves – como a depressão de Eusébio mudou a vida de um jovem jornalista
Esta história não é política. É apenas o excerto de um filme real em que um jovem, perdido e ansioso, encontrou um sentido para a vida. Contado assim parece coisa simples, mas se lhe dissermos que o caminho foi encontrado com a ajuda de uma soma incrível de coincidências e que Eusébio também ajudou sem disso fazer ideia, então talvez tenha um pouco mais de curiosidade em conhecer o que a seguir lhe conto.
O jovem da história é o meu jornalista desportivo preferido. Assina os textos com um nome feito de apelidos; nem José, Carlos, Manuel ou Luís, o nosso personagem usa Santos Neves como cartão-de-visita vai para sessenta anos.
Se este sábado lhe falo deste homem sem nome próprio é também pela justiça de uma homenagem aos jornalistas desportivos que tantas desconfianças têm gerado ao longo de décadas – uns tratam-nos como se pertencessem a uma espécie de Série B, outros que a bola não se pode misturar com coisas sérias porque cada macaco deve estar no seu respectivo galho.
Com a guerra colonial no horizonte e uns anos 60 que prometiam novos mundos e fundos, António dava voltas na cama. Dilacerado pelas dúvidas não sabia que rumo dar à sua vida. Até que um dia se levantou do torpor e tentou ser jornalista. Terminado o liceu, com 18 anos completos, foi a todos os jornais de que se lembrou. Primeiro ao Diário de Notícias, depois ao Século, Diário de Lisboa, Diário Popular, República, Diário Ilustrado e Mundo Desportivo. Nada, de nada. Chegava aos sítios, no alto dos seus imparáveis 18 anos, e dizia ao primeiro que apanhasse um «quero falar com o director», logo seguido de um «se o director não pode quero o chefe-de-redação». Do «tem alguma coisa marcada?» para o «espere aí um bocadinho», ouviu todas as variantes possíveis. Mas directores ou chefes-de-redação nunca os viu.
Só lhe restava «A BOLA», última e não desejada alternativa. Não porque gostasse pouco de futebol e do desporto em geral, mas por julgar, porventura, que a sua vida faria mais sentido em jornais que falavam de um mundo que o transcendia. Só lhe restava «A BOLA» e usou a mesma técnica que tão miserável resultado tivera. Dirigiu-se à Travessa da Queimada, subiu as escadas, entrou por uma porta à esquerda e disse ao que vinha ao primeiro que encontrou. Com toda a naturalidade, o colaborador de pingue-pongue – que anos depois morreu com cirrose – disse para António o seguir. Atravessou a Redacção, a primeira vez que o fazia na vida, e parou numa mesa ao fundo onde uma montanha de papéis e jornais tapava o chefe, um verdadeiro clássico.
O homem do pingue-pongue: «Chefe, este jovem quer falar consigo». Vítor Santos, o mítico «Chefe», levantou a cabeça a custo e António lá disse ao que ia. Combinaram que, na semana seguinte, o rapaz lhe traria um texto acerca do que quisesse. Levou-lhe uma crónica do Sporting-Porto e o chefe pediu-lhe mais. E depois de lhe pedir voltou a fazê-lo – crónicas, reportagens, entrevistas imaginárias, pequenas notícias, futebol internacional, automóveis, sei lá o que mais.
Durante nove meses, Vítor Santos fez o jovem António penar. Texto entregue, mais pedidos, textos no caixote do lixo e nada de nada. O rapaz pensou, com toda a legitimidade, que o «Chefe» o estava a gozar. E decidiu, num dia aparentemente igual aos outros, que ia entregar o último texto; já chegava. E assim foi. Travessa da Queimada, escadas subidas, virou à esquerda, entrou pela Redacção de passo firme e, quando ia dizer ao «Chefe» o que ensaiara ao espelho, a cabeça de Vítor Santos surgiu por entre os escombros e mandou-o ir falar com a secretaria de redacção, porque tinha um trabalho em agenda. E foi assim que António se dirigiu, mais feliz do que alguma vez imaginara poder estar, à secretaria de redacção, onde soube que o aguardava um palpitante Alhandra-Sacavenense. Um colega perguntou-lhe como é que desejava assinar e ele, com poucos segundos para decidir, respondeu Santos Neves.
Às oito da manhã comprou o primeiro exemplar de «A BOLA» no quiosque da rua. Levou-o para casa e mostrou ao pai: «É isto que quero para o meu futuro.» Relações cortadas por algum tempo. «Boémio e bêbado é o que queres ser», outro clássico.
Depois da segunda divisão continuou a escrever. E de colaborador passou a esperança. Nesses anos 60, Vicente de Melo era o director e parecia impossível a entrada para o quadro – privilégio reservado a uns poucos. Carlos Pinhão, Homero Serpa, Alfredo Farinha, Carlos Miranda, Aurélio Márcio e poucos mais ocupavam as primeiras posições e um enorme batalhão colaborava e recebia pela quantidade de textos que escrevia. Santos Neves, apesar do talento, não parecia ter margem de progressão profissional. A desilusão ainda mais se acentuou quando Mário Zambujal lhe disse, em surdina, que o lugar no quadro era seu porque resolvera sair. Uma impossibilidade: embarcava para a guerra uns dias depois. Moçambique era o destino.
Passaram semanas, gastaram-se meses e dois anos depois, quando no jornal já poucos dele se lembravam, estalou uma polémica com Eusébio. Corria o ano de 1969 e o «pantera negra», arreliado pela proibição de poder jogar no Inter de Milão e ganhar dinheiro a sério, ameaçou não voltar ao Benfica e refugiou-se em Lourenço Marques, no bairro de Mafalala. Quis outra vez o destino, ou a sorte, que António Santos Neves estivesse a gozar a sua única licença de um mês em três anos de guerra. A medo telefonou outra vez para o «Chefe» e perguntou se queria que fizesse alguma coisa.
O «Chefe» exultou e o soldado fez as primeiras páginas do jornal «A BOLA» durante as semanas em que Eusébio esteve deprimido em Moçambique. E voltou para a guerra mais um ano.
Ao regressar do mato passou pelo jornal para cumprimentar as pessoas. O «Chefe» recebeu-o com um abraço e perguntou-lhe o que ia fazer à vida. Respondeu que ia enviar currículos. Vítor Santos, ao seu jeito, mandou-o ir falar com o director, porque, surpresa das surpresas, tinha algo de importante para lhe dizer. E foi assim, talvez por causa de Eusébio e da sua depressão, que alguém não foi esquecido e pôde ter uma oportunidade que lhe moldou a vida.
Não é uma história política; ainda assim é um conto sobre o destino ou a sorte. Santos Neves diz que foi a incrível sorte e a força das circunstâncias que o fizeram ser jornalista desportivo. Prefiro achar ter sido o destino e um toque divino. Afinal, que maior legitimação poderá querer um jornalista desportivo? A opinião de que foi Deus, utilizando todas as armas, quem preferiu que este rapaz, António de seu nome próprio, fosse isto e não outra coisa qualquer.
Luís Osório (Postal do Dia)
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«Estas coisas da alma», crónica de Manuel Sequeira
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Tive o privilégio de conhecer Santos Neves
O Manuel Sequeira fez-me recordar um dos mais «intrigantes» chefes de redacção que conheci. O Chefe Santos Neves parecia sempre muito distante e calado mas quando o conhecíamos melhor descobríamos muita humanidade e disponibilidade para ajudar quando estávamos «atrapalhados». Mesmo quando foi publicada a lei que proibia fumar nos locais de trabalho ninguém na produção ou na redação do jornal «A BOLA» tinha coragem para o avisar quando entrava porta dentro com o cigarro acesso.
Se bem me lembro foi o último jornalista da redacção a aderir à máquina de escrever. Não sei mesmo se alguma vez o fez. Penso até que passou diretamente do papel para o computador portátil. E eram sempre dezenas de A4 manuscritos com uma letra que todos reconhecíamos como sendo sua que chegavam à fotocomposição com as suas crónicas. Quando o Santos Neves era escalado para os jogos internacionais que se disputavam à noite provocava no departamento de produção (e em especial na paginação) um nervoso miudinho e muita ansiedade porque todos sabíamos que invariavelmente as suas páginas seriam as últimas a fechar comprometendo, por vezes, a hora ideal de fecho do jornal estipulada até às duas da manhã.
Uma das noites europeias mais marcantes que vivi em «A BOLA» ocorreu a 15 de Março de 1994 quando o Benfica foi jogar à Alemanha com o Leverkusen e empatou 4-4 (com 1-1 na primeira mão na Luz) num jogo épico para a segunda mão dos quartos-de-final da extinta Taça das Taças. O Benfica «passou» porque naquele tempo os golos fora, em caso de empate, valiam a dobrar. Toni era o treinador do Benfica e tinha na equipa os três russos (Iuran, Kulkov e Mostovoi). Os titulares encarnados foram: Neno, Abel Xavier, Hélder, William, Schwarz, Vítor Paneira, Kulkov, Rui Costa, João Pinto, Esaías e Iuran. A sequência no marcador foi «imprópria para cardíacos»: 1-0 por Kirsten (24′), 2-0 por Schuster (58′), 2-1 por Abel Xavier (59′), 2-2 por João Pinto (60′), 2-3 por Kulkov (78′), 3-3 por Kirsten (80′), 4-3 por Hapal (82′), e 4-4 por Kulkov (85′).
Nesse tempo o jornal «A BOLA» era publicado cinco vezes por semana e como no dia seguinte não havia edição o «enviado-especial Santos Neves» não enviou nessa noite a crónica do jogo do hotel na Alemanha e resolveu vir escrevê-la, no dia seguinte, à redacção em Lisboa. Não me recordo se o avião atrasou mas a verdade é que as páginas da reportagem do jogo foram as últimas a fechar. Durante muitos anos recordámos, com carinho, este episódio do chefe Santos Neves e da sua forma única de estar e ser. «Tinha conseguido ser, mais uma vez, o último a fechar mesmo com mais 24 horas.»
Aqui deixo a minha vénia ao Jornalista Santos Neves. Um dos últimos «monstros sagrados» do jornalismo da Imprensa desportiva que tive o privilégio de conhecer e com quem muito aprendi. O meu eterno obrigado.
José Carlos Lages
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