Em defesa da forma como beirões e transmontanos pronunciam alguns vocábulos apresentam-se dois casos que merecem análise…

A pronúncia dos «ss»
– O que é xou?
O inquirido, atento à pronúncia do termo em questão, e tendo em conta o uso e abuso de estrangeirismos que a língua portuguesa tem vindo a assimilar, respondeu de imediato:
– Show é espectáculo, exposição…
O inquiridor apressou-se a «esclarecer», soletrando com rigor:
– Xou é a primeira pexoa do xingular do prejente do indicatibo do bervo xer em Bijeu.
– O que é uma chúchia?
– Chúchia é uma chupeta.
Quem questiona transige, mas adianta:
– Chúchia é uma achochiachão ou reunião de pechoas malfeitoras.
Os exemplos transcritos ilustram, em abundância de trocas e baldrocas e com o costumado exagero anedótico, a forma como por vezes os beirões são ridicularizados pelo excesso de correcção posto na pronúncia de certas palavras, trocando o «s» pelo «x», o «v» pelo «b» e vice-versa. Assim sendo, vem a propósito recordar o que sobre o assunto foi comentado por um dos maiores cultores da língua portuguesa: Cândido de Figueiredo (1846-1925).
Escritor, filólogo ilustre, vulto eminente das letras, professor, autor de um dicionário de língua portuguesa que constituiu e constitui, nos nossos dias, elemento de consulta permanente para profissionais, estudiosos, críticos, professores, alunos e público em geral, Cândido de Figueiredo esclareceu sucintamente a pretensa transformação dos «ss» em «x» ou «ch», imputada tantas vezes a beirões e transmontanos na sua forma correctíssima de pronúncia.
Em «Anotações a uma Gramática», o escritor, natural de Lobão da Beira (Tondela), fez comentários pertinentes à «Gramática Portuguesa» de Alfredo Gomes, laureado académico e professor da Escola Normal do Rio de Janeiro:
«Considera o autor um provincialismo privativo de Trás-os-Montes e Galiza a transformação dos ss em x. Tal transformação não existe. Em Trás-os-Montes e na Beira a pronúncia dos ss e do s inicial não se parece nada com a do x: é uma fonação especial, que estava bem representada por s e por ss, enquanto a pronúncia destes sinais não sofreu, nas cidades, a transformação que lhe deu o som actual. Hoje, em Lisboa, e na maior parte do país, como no Brasil, disse pronuncia-se como se escrevêssemos dice e era assim que escrevia, por sua conta e risco, o Evaristo Leoni, autor do Génio da Língua Portuguesa, para não falarmos de alguns secretários do imortal cego Castilho. Mas a pronúncia antiga não era esta: era o que inda é na Beira, em Trás-os-Montes e em toda Espanha. Na Beira e em Trás-os-Montes também o s intervocálico não soa como z, nem o ch como x. Mas isto daria um capítulo ou um livro, e as tipografias não possuem todos os caracteres e sinais representativos da pronúncia beiroa e transmontana. Por agora, basta saber-se que o transmontano e o beirão não confundem ss com x, se bem que a palavra dixe assim se escreveu e pronunciou, como se vê em Gil Vicente, em mais de um lugar.»
(«O que se não deve dizer», de Cândido de Figueiredo, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1916.)
A água
A propósito, adianto uma interpretação que suponho plausível quando ouço beirões e transmontanos pronunciarem «a i água» ou «eiágua», como soa foneticamente, quando se referem a «a água». Hiato é o encontro de duas vogais que não formam ditongo. Serve de exemplo o recurso à crase, para evitar o som dissonante que o hiato provoca: «para a frente» substituível por «prà frente» ou «para avançar» substituível por «pr’avançar». Se por crase ocorre a supressão de uma semivogal mantendo-se a vogal com o som aberto, a colocação do apóstrofo resolve de modo semelhante a eliminação do hiato, como se pode verificar igualmente no exemplo «olho d’água». Em «a água» beirões e transmontanos solucionam foneticamente a supressão do hiato pela interposição do fonema «i» entre a semivogal e a vogal, mantendo-se os sons originais que as caracterizam e que as tornam distintas, sem necessidade de supressão ou elisão.
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«Língua Estufada», opinião de José Leitão Baptista
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