José Avelino Gonçalves, magistrado, pesquisador, investigador, escritor, depois de nos ter apresentado três livros de contos, a trilogia, que intitulou «A grande devassa e outras histórias», com um estilo literário onde não falta o humor e a capacidade criativa, regressou ao prelo com um livro repleto de casos insólitos historicamente fundamentados em processos judiciais nos sótãos do Tribunal da Covilhã.

Estou a ver o Juiz escritor, no meio de pó e humidades, sótãos, antigos arquivos de tribunais, a descobrir documentos e processos judiciais das gentes das nossas Beiras, as fontes, os alicerces dos seus livros. Face ao seu método, quase podemos afirmar que estamos na presença de um trabalho de arqueologia.
Há tempos, no Salão Nobre da Câmara Municipal da Covilhã, foi, pois, apresentado o livro «Do Rio da Prata às Beiras» perante numerosa assistência.
Também nesta obra o autor faz uma «grande devassa», através dos casos judiciais dá-nos um poderoso retrato dos conflitos, dos amores e desamores, dos vícios, da sociedade do século dezanove. O texto percorre territórios beirões, que nos levam às mais diversas personagens, beatas, clérigos, militares, juízes do povo, advogados, liberais e absolutistas… residentes em Medelim, Vale de Prazeres, Barroca, Fundão, Covilhã, Alpedrinha, Castelo Branco, Sortelha, Telhado, Paul, Peraboa, Caria, Belmonte, Proença, Sarzedas, Tortosendo, Vila de Rei, Alfaiates (Sabugal), e tantas outras localidades, sem esquecer a Serra da Gardunha, o Ninho do Açor, a Serra da Estrela e a Lousã.
Esta obra é muito humana e satírica, rica de humor, leva-nos à boa disposição e mesmo à gargalhada, o que agarra qualquer leitor à sua leitura.
Folheamos esta obra e verificamos as inúmeras referências à saborosa e única gastronomia das nossas Beiras. Alguns exemplos: «Posta de lombo lardeada de toucinho e entressachado de azeitonas e túberas, uns robalos afogados em farinha, com um branquinho de cor citrina, umas belas iscas de fígado encharcadas em cebola das beiras e uma suculenta vitela assada, broa de milho, no forno assava-se uma formidável perna de porco, casamentada com umas saborosas batatinhas alouradas e um suculento arroz doce.»
Do Fajão (Pampilhosa da Serra), uma receita para peixinhos fritos: junta-se um pouco de azeite de fritar, alhos laminados, folhas de louro, pimenta, vinagre, colheres de sopa, piripiri, apura-se o molho de escabeche e vai à mesa com broa de milho e batata cozida. Também não fica de fora o cabritinho recheado e os carolos de Fajão… também não faltam referências às puras e refrescantes águas, principalmente àquelas junto à Quinta da Fórnea.
Com este avantajado receituário gastronómico não há falta de apetite, com dispensa de bulas pontifícias.
Encontramos no livro viajantes que atravessavam caminhos serranos, que «andavam sempre farelados com duas pistolas à cintura e uma moca de boa madeira serrana» (ainda não se sonhava com as Mocas de Rio Maior), ou o vinho de três assobios, dos vinhedos do Fundão, que corria sanguíneo para as canecas de barro, dos oleiros do Telhado («o bom vinho que alegra o coração do homem.»).
Exuma-se a figura de um Juiz Ordinário de Alpedrinha que, dada a sua incompetência, remete para o Juiz de Fora do Fundão o seguinte despacho, «como os presentes autos são todos consistentes em leis antigas e novíssimas, e não tendo eu conhecimento de Direito para poder proferir uma decisão conforme os mesmos, não posso deliberar sem receio de causar injustiças às partes litigantes, portanto remeta-se o processo ao m. º Juiz de Fora do Fundão, para o despachar como achar de Justiça.»
Nesta sátira total a várias personagens sociais, políticas, religiosas e fidalgas, numa prosa de fácil leitura, com vernáculo da época, o romance descreve-nos também as tensões e lutas políticas entre liberais e miguelistas. «Do Rio da Prata às Beiras» é, pois, uma viagem aos conturbados tempos dos primeiros anos do século XIX, com «personagens, acontecimentos, bulhas políticas, amores, boas e requintadas paisagens e repastos e, acima de tudo, uma visão diferente, uma novidade das nossas bondosas e acarinhadoras Beiras.»

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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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