Certo dia, lá para os finais de Agosto de 1957, o senhor Leocádio levantou-se pela calada da noite e saiu de casa com a costumada saca de serapilheira às costas…

Só olhos perspicazes dariam conta de que não era café para contrabando, mas sim umas ceroulas, um par de calças, uma camisola e pouco mais. Já ninguém estranhava o ranger da sua porta a qualquer hora da noite. Todos sabiam que ele calcorreava os caminhos e carreiros da fronteira diariamente. Saco de café para lá e um odrezinho de azeite para cá, um taleigo de pão, uns quilos de trigo, umas galhetas a pedido de alguém. Naquela noite lá ia o Ti Leocáldio mas de olhos chorosos e cabisbaixo. Até a saca parecia mais volumosa do que nunca. A mulher ficara a olhá-lo entre a ombreira da porta. Mantinha-se parada e calada. De vez em quando, levava a ponta do avental aos olhos e ao nariz, fungando alguns soluços sufocados.
O seu homem ia ficando um pontinho negro, iluminado pela lua cheia, lá ao longe, Nem um adeus fez, nem olhou para trás uma só vez.
O ti Leocádio falava castelhano como qualquer outro habitante de Navas Frias ou de Valverde del Fresno. A sua boina basca na cabeça, as calças negras de pana e a jaqueta pelas costas, também não o denunciavam como português. Foi assim que apanhou boleia numa camioneta de carga até perto de Salamanca. Aí, não encontrou nova boleia. Foi caminhando rente à estrada longas horas. O estômago doía como se estivesse colado às costas. Os sinos da igreja de São Marcos, ali ao lado, desataram a tocar as Trindades, anunciando o cair da noite. Católico desde pequenino, lembrou-se dos seus dois anos de seminarista, antes do pai ter morrido e a mãe precisar dele para a ajudar nos trabalhos do campo.
Dirigiu-se à porta e empurrou-a. Em boa hora o fez. O senhor cura estava a sair. O ti Leocádio deu-lhe a saudação e beijou-lhe a mão com humildade. O senhor cura sorriu-lhe e avisou que iam fechar. «Mas se precisasse de alguma coisa em que ele pudesse ajudar», ofereceu com boca pequenina.
O ti Leocádio tinha esperança de a igreja ficar aberta durante a noite. Olhou o cura com ar decepcionado e quase suplicante. O sacristão que acompanhava o cura, apercebeu-se daquela angústia e ofereceu um cantinho em sua casa para o acolher. Avisou logo que era uma casa humilde, onde vivia com o seu pai já muito velhinho. Mas deveria ter por lá, um caldinho quente para lhe confortar «a barriga». Assim nasceu a grande amizade entre o ti Leocádio e o seu amigo Tomaz. Tantas, tantas vezes ele contava esta história. Afirmava que daria a sua própria vida para proteger o ti Tomaz e o pai. «É que fiquei lá quinze dias, como se fosse da família», acrescentava.
E assim foi. O ti Leocádio, que percebia de carpintaria, aproveitou o tempo a consertar uma cadeira partida, uma porta que arrastava, uma mesa com as pernas desniveladas, uma talha do altar que descolara… Foi a pedido do ti Tomaz que arranjou boleia para França.
Mas o ti Leocádio ainda tem muito para contar até chegar ao destino!…
E eu sentava-me nas escaleiras do balcão a ouvi-lo falar com a Lua a alumiar aquelas lindas noites de Agosto.
:: ::
«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
:: ::
Leave a Reply