O que é isso de ser migrante? São todos os que chegam e os que partem! Mas eu vou falar dos nossos emigrantes (e em especial do Ti Bernardo) dos anos cinquenta. Sim, que por ser criança nessa época, sou «sábia» no assunto…

O emigrante é aquele que parte. Aquele que deixa todos os tesouros que possui e conhece, (família, amigos, língua, usos e costumes, casa, terras…) para ir em busca de algo desconhecido e trazer de volta ou substituir, noutras paragens, por algo melhor.
Quando eu era menina abalaram os primeiros homens da aldeia, para restaurar a França saída, recentemente, da guerra. Tinham, por cá, nas suas aldeias, muito trabalho, de sol a sol, mas e retorno? Bastava uma chuvada e ventania, uma seca ou geada negra para nem haver pão para pôr na mesa. Assim, iam à sorte e a salto, a tentar conquistar um novo «pão». E lá iam eles, com uma mala de papelão pintada de castanho, fechos de metal brilhante, atada com cordéis para conseguirem carregá-la às costas. Na alma, levavam a dor da despedida, o último abraço da mãe, da esposa, dos filhos, sobrinhos, dos companheiros de vida.
Mal ou nada sabiam ler e escrever. E era preciso tinteiro, caneta de aparo, papel. Sim que ainda não chegara a «BIC» (primeira esferográfica). Telefone era para ricos. Havia um (quando havia) no posto do correio de cada aldeia. Mas, talvez encontrassem quem lhes ajudasse a pôr uma «carta nos correios»! Era a esperança que alimentava o sonho!
Se a caminhada era difícil?! Só quem ouviu relatos das mais mirabolantes peripécias, poderá imaginar. Pois, aqueles que as viveram, nessa época, hoje já faleceram.
Mas, eu sei de muitas. Sei de quem partiu e não chegou; de quem chegou e não resistiu à fome e ao frio; de quem se agasalhou anos a fio em carros abandonados, em barracas de tábua forradas a latas de «bidões»; de quem vivia em camas estendidas pelo chão das barracas das obras, ao lado das construções que, dia após dia, iam ajudando a erigir.
Quantos sucumbiram a tão árduo viver! Não fossem os serviços sociais a cuidarem aqueles homens, muitos mais teriam perdido a vida! Os que resistiam tinham um propósito firme: construir um presente menos árduo para eles e, sobretudo, para os seus filhos e pais. Haviam de arranjar uma casa. Podia ser uma daquelas, espalhadas pelos lugares devastados pelas bombas, que ainda mantinham os muros bem firmes. Se sabiam trabalhar para os outros, porque não para si mesmos, nos dias de folga?! Destes, sei eu… Um dia conto.
Hoje, lembro as lágrimas de gratidão do ti Bernardo, quando recebeu a primeira «peia». Nunca tivera tanto dinheiro na mão – contava ele. Mas, a maior dor, era não saber falar ao seu patrão. Não saber dizer as palavras que ele entendesse. Não ter coragem, por respeito, de lhe dar aquele abraço que sentia.
Quanta necessidade ele tinha em conversar. Já aprendera a dizer pão, carne, trabalho, bom dia e o nome das ferramentas e materiais do trabalho. Porém, eram só palavras! Não davam para conversar, como fazia na aldeia com a sua mãe, com a Benedita e com os amigos. Óh!, se ele soubesse falar! Se pudesse dizer ao patrão coisas importantes! Falar-lhe dos seus desejos, das suas dores e até podia dizer-lhe que queria ir buscar a sua mulher à aldeia! Ela era tão habilidosa e trabalhadora. De certeza que a esposa do patrão iria gostar muito dela.
Não é que o patrão conseguiu ler-lhe o pensamento pelo olhar?! Naquele dia, levou o ti Bernardo ao consulado. Ali, falaram um para o outro através duma intérprete.
O patrão soube que ele, nem sequer uma carta tinha enviado à esposa! Estava na hora certa do fazer. E, ali mesmo, ficou o envelope fechado, já selado com as palavras ditadas e cheias de emoção. Dizia o ti Bernardo, que era como se tivesse recuperado a voz depois de tanto tempo de estar mudo! E como ficariam felizes lá na terra, sua mãe, sua Benedita e todos os outros.
Já me alonguei muito… Contarei mais, noutra altura.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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