No dia 26 de Março de 1925 nasceu, na aldeia do Peso (Covilhã), António Morão, oriundo de uma família rural e com dez filhos, comemorando-se no presente ano o centenário do seu nascimento. Como aconteceu a muitos jovens oriundos deste extrato social, dar continuidade aos estudos só era possível com o ingresso nos seminários. Assim aconteceu ao jovem António Morão…

António Morão foi ordenado sacerdote em 1961 foi-lhe atribuída a paróquia de Malpartida (Almeida). Com um espírito jovem e dinâmico, inaugurou uma relação de proximidade entre a igreja e a comunidade, granjeando naturalmente a amizade de todos.
Não era um padre de beija-mão, de limpa sandálias, de graxas a sapatos, mas sim discordante de muitas directrizes e comportamentos episcopais. Entrou em tensão com o titular do cargo, que lhe retirou o múnus da Paróquia, e fez com que seguisse para a Academia Militar, a fim de ser nomeado Capelão Militar.
Em Angola cumpriu uma comissão militar, 1961-1963. As suas acções, intervenções pastorais e humanas centralizaram-se na justiça, na paz, na concórdia, na crítica à situação política vigente, dentro do pensamento do Papa João XXIII, na encíclica «Pacem in Terris».
Regressou à Metrópole, com os olhares desconfiados do homem da mitra, que o empurrou para o extremo do concelho do Fundão, a paróquia da Orca.
Além de pároco era um cidadão atento às acções políticas, participando nas comemorações do 5 de Outubro, foi membro regional de Socorro aos Presos Políticos e da Comissão do 3.º Congresso Democrático, realizado em 1973.
Nos caminhos do jornalismo, em 1967 começou a escrever no «Jornal do Fundão», textos que parecem exercícios de manobras, de fintas, para que fossem publicados sem que actuasse o lápis azul da censura. Naquele jornal chegou a Chefe de Redacção. A primeira fase de colaboração durou doze anos. Retomou aquelas actividades jornalísticas em 1990, até ao seu falecimento em 1997.
Durante quinze anos esteve à frente da paróquia da Orca e, sobre o seu trabalho, nada melhor que ouvir alguns dos seus paroquianos. No moderno e acolhedor Café Zé Brito, antiga taberna onde, conjuntamente com outras quatro existentes na Orca, o Padre António Morão reunia-se, conversava principalmente com os jogos e jogava uma cartada, uma suecada com os mais velhos.

Transcrevo as opiniões de diversos paroquianos da paróquia da Orca…
Joaquim Fernandes Mesquita, de 76 anos, encarregado geral de empresa de refrigerantes: «Veio substituir o Padre Barroso, que esteve na Orca cinquenta anos. Este sacerdote era muito metido na igreja e ligado a actos religiosos. O Padre Morão chegou aqui quando regressei do Ultramar e tive com ele vários convívios. Foi quem me casou. Até tenho uma história, pedi-lhe para me confessar, mas que fosse rápido, porque tinha de ir fazer uma despedida gastronómica com os meus amigos. Respondeu-me… “sou rápido e também vou confraternizar convosco”. Estava-se na presença de um homem com ideias novas, de convivência com todos, principalmente com os jovens. Organizava jogos de futebol no Campo da Senhora da Oliveira entre as populações mais próximas. Iniciou-se assim uma nova época paroquial na Orca.»
José Fernandes Ramos, 65 anos, agente de autoridade: «Foi um grande homem. Na época foi um padre diferente nas suas acções pastorais. Era um vanguardista, um homem muito à frente do seu tempo. Foi impulsionador da Telescola, frequentada por muitos alunos, não só da Orca, mas também de aldeias vizinhas. Assistia-se às aulas num edifício particular com o apoio do Ministério da Educação. Os jovens frequentavam a Casa Paroquial, como se estivessem nas suas casas, onde conviviam com o Padre Morão. Estava sempre disponível para ajudar e aconselhar as pessoas. Para mim foi uma referência, sem esquecer o Padre Casimiro Mendes Serra, que o substituiu. Graças ao Padre Morão, com o apoio da Associação Desportiva e Cultural da Orca, que naqueles tempos tinha uma grande dinâmica e muita juventude, todas as semanas se realizavam eventos desportivos, culturais, musicais, literários… Em termos políticos era um revoltado contra o regime vigente: os textos no Jornal do Fundão, de que era colaborador, eram bem reveladores das suas ideias, lido nas entrelinhas…»
Laurinda Mesquita, 73 anos, agricultora: «Fez bem e fez muito mal… por aqui fico. O povo da Orca é muito pacífico, embora se diga que uma vez foi agredido por um popular. O meu pai, José António Ramos, conhecia-a muito bem, ajudava a Igreja e foi durante cinquenta anos sacristão e coveiro. Trabalhava por dia na agricultura, mas colaborava na Igreja. Tem cem anos, fragilizado e aos meus cuidados na minha casa. O meu pai sabia muito, mas infelizmente já não está para conversas.»
Fernando Manuel Alves Galante Nunes, 73 anos, agente judicial: «Quando era jovem convivi com o Padre Morão. Era muito nosso amigo, ouvia-nos, apresentava-nos sugestões para o nosso futuro, íamos passear pelos campos da Orca e organizava jogos. Um padre enérgico, frontal, com ideias políticas muito à frente de todos. Reuníamo-nos muitas vezes na Casa Paroquial e recordo que desmitificava a ideia do Deus castigador. Para ele, Deus era Amor.»
João José Duarte Carvalho, 82 anos, feitor: «Era um homem muito social, de muita convivência. Não proibia os bailes e até neles participava. Motivou muitos jovens a ter pensamentos críticos, a ter desenvolvimentos para a construção do seu futuro. Considero o percurso do Padre Morão como um acto de liberdade e de coragem perante um país que não o aceitava e que cortava a voz ao pensamento.»
Perante os depoimentos, sobressai no Padre Morão a capacidade de diálogo, mas principalmente de escutar. Escutar não é apenas ouvir, mas dar atenção aos outros. Quem nos dera que tantos que exercem missões pastorais seguissem este exemplo.
Estava na linha do Vaticano II, que propunha uma visão de Igreja em renovação constante, sempre atenta, em diálogo com a sociedade e o seu tempo, com olhares de bondade, solidariedade e compreensão.
Em 1978, abandonou o sacerdócio, casou e emigrou para a Alemanha, onde foi professor de Português.
Em 1990, regressou a Portugal, retomou a colaboração com o «Jornal do Fundão» e exerceu o professorado na Escola Secundária do Fundão.
Homem de cultura, partilhou os seus conhecimentos e saberes, deu a conhecer livros e discos de música de intervenção.
Um Padre ousado e frontal, que viveu a pastoral com o seu povo, um professor ilustre e dedicado aos alunos, um jornalista crítico e activo, enfim, uma personalidade que não deve ser esquecida nas comunidades onde trabalhou.
Aqui deixou a minha homenagem no aniversário centenário do seu nascimento, e que acompanhei os seus escritos no Jornal do Fundão. Algumas vezes, infelizmente muito poucas, nos cruzámos pessoalmente.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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