:: :: 1999 (2) :: :: Do Douro à Gardunha no fim dos anos de 1900, à redescoberta de Somiedo e de outros paraísos naturais asturianos, Pola de Somiedo, rio Somiedo, Puerto de San Lorenzo e Naranjo de Bulnes nos Picos da Europa e… un tiempu meyor.

:: :: :: :: ::
1999
(segunda parte)
:: :: :: :: ::

Do Douro à Gardunha no fim dos anos de 1900
No último trimestre de 1999, duas «aventuras» assinalariam o fim do penúltimo ano do século, ambas em ronda de amigos. Em Outubro, subimos o Douro até à Régua, e, em Novembro, voltámos à Gardunha e às terras de Alpedrinha.
Assim, no dia 8 de Outubro à tarde, o nosso «grupo dos seis» estava a partir para o Porto, dois casais na nossa autocaravana e o outro no respectivo Passat. «Acampámos» no velho parque da Prelada e a primeira «aventura» foi meter os seis no Passat, à noite, para ir jantar!
No dia seguinte de manhã estávamos na bela Ribeira, prontos para o cruzeiro. O Douro ia mostrar-nos as suas belezas naturais, numa paisagem humanizada pelos seus famosos vinhedos, mas também pelas sucessivas barragens e respectivas eclusas. Em Entre-os-Rios, passámos sob a Ponte Hintze Ribeiro mundialmente conhecida menos de dois anos depois, quando um dos pilares desabou, levando à queda de parte do tabuleiro no Rio Douro, levando consigo um autocarro e três carros e matando cerca de 60 pessoas.
O regresso da Régua ao Porto foi de comboio, na velha linha do Douro, quase sempre à beira rio. Sem dúvida um belo passeio, que anos mais tarde completaríamos até Barca de Alva.
Um mês depois, à semelhança do ano anterior, a 4 de Novembro voltávamos a Alpedrinha, para passar outros quatro dias em terras da Gardunha. Nestes dias, ainda houve um passeio a Idanha-a-Nova – visitando o seu Museu Etnográfico raiano – e ao Santuário da Sra. do Almurtão e um apelo da serra: os três «machos» do grupo calcorrearam a velha calçada romana de Alpedrinha, atravessaram a serra, desceram por Alcongosta e foram até ao Fundão a pé; são apenas uns curtos sete quilómetros. De resto, estes dias foram de puro descanso, convivência e amizade vivida.
E chegava a «data mágica»! Não era ainda o fim do século e do milénio, mas era a data mais «mística» e «enigmática». Como me lembro, como se fosse hoje, de com 13 ou 14 anos, ou até mais, pensar «ano 2000»? Ainda falta tanto! O tanto havia-se contudo transformado em tão pouco, o ano 2000 estava ali mesmo a chegar! Até sobre as «primeiras aventuras» relatadas nestas crónicas já se tinham passado 30 anos!
:: :: :: :: ::
:: :: :: :: ::

À redescoberta de Somiedo e de outros paraísos naturais asturianos
A 26 de Julho de 1999, partíamos para as nossas segundas férias a dois para o norte peninsular! Desta vez começámos pela Galiza. A Península do Morrazo, frente às ilhas Cíes, ocupou-nos os quatro primeiros dias, numa de mar e de céu, dos cortes e recortes daquela costa escarpada. Moaña, o Cabo Home, Hío, Aldán, são nomes que soam a liberdade, a uma Natureza ainda quase no seu estado mais puro antes do Prestige! Depois, rumámos a Lugo, Fonsagrada e entrámos nas Astúrias, por Grandas de Salime e pela Serra do Rañadoiro.
Por Cangas de Narcea e pelo Puerto de Leitariegos, passámos por momentos ao norte de Leão, para reentrarmos nas Astúrias no Puerto de Somiedo! Descemos a Pola de Somiedo, subimos a Valle de Lago e o Camping Lagos de Somiedo esperava por nós. É verdade: dois anos depois, estávamos de novo no paraíso perdido de Somiedo, a minha terceira «terra natal»! Desta vez nada nem ninguém me tiraria de lá!
Ao contrário do dia 5 de Agosto de 1997, o dia 1 de Agosto de 99 amanheceu esplendoroso! O Sol iluminava o vale onde estávamos, encaixado entre as encostas que dois anos antes nem sequer tínhamos visto. Os folhetos fornecidos pelo parque e as consultas numa internet ainda relativamente incipiente falavam-me das brañas vaqueiras, da Braña de Sousas, ali relativamente perto de Valle de Lago, dos Picos Albos e de tantos e tantos possíveis percursos a pé por aquelas montanhas, onde pareciam ecoar os acordes dos Llan de Cubel, aqueles que ainda hoje continuam a ser a minha referência na folk asturiana.
O dia 1 de Agosto foi assim o da descoberta do Lago del Valle, o maior lago glaciário da cordilheira cantábrica. Era a caminhada que teríamos feito dois anos antes e uma das muitas que viria a fazer nas terras mágicas de Somiedo. Saindo da aldeia pelo bairro de Auteiro, vamos ganhando altitude, subindo o vale do rio del lago. Surgem-nos os primeiros teitos. Os teitos são cabanas típicas do ocidente das Astúrias e noroeste leonês, construídas em pedra, com cobertura vegetal, normalmente de palha de centeio ou giesta. Os aglomerados de teitos caracterizam as brañas, ligadas à transumância entre as pastagens de altitude, para onde em Maio os vaqueiros subiam em busca dos frescos prados, regressando para passar o inverno nos campos e pastagens mais baixos. As brañas correspondem às nossas brandas e inverneiras, típicas por exemplo das Serras da Peneda e do Soajo.
:: :: :: :: ::
:: :: :: :: ::

Pola de Somiedo, rio Somiedo, Puerto de San Lorenzo e Naranjo de Bulnes nos Picos da Europa
Ao longo de um vale majestoso, caminhávamos em direcção aos Picos Albos e à parede por trás do Lago del Valle, que separa as Astúrias de Leão. O lago, que neste trajecto só se vê praticamente quando lá chegamos, situa-se a 1570 metros de altitude, rodeado dos altos picos que fecham aquele circo glaciar, ultrapassando os 2000 metros, a sul. Que melhor sítio para almoçarmos? A sensação de ter «conquistado» aquele lugar, que dois anos antes tinha estado perdido nas nuvens e chuvas, é indescritível. E as montanhas à volta chamavam-me para mais «aventuras», para palmilhar os trilhos que se percebiam possíveis. Mas os carros e caravanas ainda não têm telecomando para os teletransportar para outro lado. É uma das vantagens de fazer caminhadas em grupo: o autocarro vai-nos buscar a outro destino. Assim, descemos de novo o vale, de regresso a Valle de Lago e ao parque de campismo. A visão no sentido descendente é também extraordinária, com a aldeiazinha a perceber-se desde meio caminho, ao lado da Peña Furada, o grande bloco rochoso a sudoeste, furado de lado a lado por um grande «olho natural». Menos de um ano depois estaria em Somiedo com alunos!
Mas Somiedo não acaba no Lago del Valle, muito pelo contrário. Dia 2 de Agosto, descemos a Pola de Somiedo e descemos o curso do rio Somiedo até à central de La Malva e a La Riera. Era a estrada que dois anos antes havíamos feito em sentido contrário, quando pela primeira vez eu tinha sido tocado pela magia de Somiedo. Agora, em mais um esplendoroso dia de Sol, as encostas e os montes pareciam rejubilar de vida. E em La Riera rumámos a leste, voltando a subir, desta vez para o Puerto de San Lorenzo e para as nuvens. O Puerto de San Lorenzo divide as comarcas de Somiedo e de Teverga e, com elas, separa as terras somedanas dos chamados Valles del Oso, por neles se encontrarem ainda alguns dos últimos ursos pardos cantábricos, se bem que do lado de Somiedo também, principalmente no vale do Pigueña.
Mas à medida que nos aproximávamos do Puerto de San Lorenzo os céus fechavam-se num imenso nevoeiro que não deixava ver nada. Somiedo tem os seus mistérios, os seus dias de glória, mas também os seus dias de misticismo, em que as nuvens escondem as montanhas, realimentando as águas que escorrem pelas encostas verdejantes. Dali, do Puerto de San Lorenzo, apenas víamos as placas indicadoras de um trilho e os primeiros metros dele. Uns anos mais tarde lá estaria para fazer o Cordal de La Mesa, o trilho naquela altura perdido nas nuvens.
E assim descemos a Teverga, simpática vila no vale do rio Trubia, que descemos ao longo do desfiladeiro de Peñas Juntas e da Senda del Oso, velha linha mineira transformada em trilho pedestre e ciclista. Claro que logo nasceu a ideia de ali levar também alunos tanto mais que em Teverga tínhamos visto a existência de um Albergue. E em Proaza visitámos a Casa del Oso, exposição sobre o habitat do urso pardo e a sua história na cordilheira cantábrica. Depois do ocidente rumámos ao oriente das Astúrias: por Oviedo e Cangas de Onís, fomos passar dois dias ao «nosso» velho Camping «Naranjo de Bulnes», em Arenas de Cabrales. Basicamente de descanso, o primeiro desses dois dias foi dedicado a uma curta caminhada à aldeia de Camarmeña e ao miradouro do Naranjo de Bulnes, o mítico torreão rochoso, emblema dos Picos de Europa e do montanhismo, sobre a pequena aldeia de Bulnes e aos pés da já nossa conhecida Senda del Cares.
Continuando para leste, no dia 5 cruzámos a Sierra del Cuera, a norte de Arenas, para descermos depois o desfiladeiro de La Hermida, em direcção a Potes. Em tantas vezes que já atravessámos este desfiladeiro, ao longo do rio Deva, foi sempre ficando para trás uma caminhada mítica, que ainda um dia quero fazer: a Ruta de Tresviso, ligando a aldeia do mesmo nome, nos cumes próximos de Sotres, ao rio Deva e ao vale. E sendo o vale de Liébana também já nosso velho conhecido, o dia 6 foi igualmente de completo descanso, no camping das nossas «amigas» cunhadas, o velho «La Isla – Picos de Europa».
Pelo Puerto de Piedrasluengas, passámos depois para terras palentinas e leonesas, contornando a Reserva de Fuentes Carrionas, por Cervera de Pisuerga e Guardo. Em Boca de Huérgano, próximo de Riaño estivemos um dia e meio «retidos» na caravana, no Camping «Alto Esla» à espera que a chuva parasse! E no dia 9 a chuva parou!
Reentrámos nas Astúrias pelo Puerto de Tarna, atravessando o recém criado Parque Natural de Redes, ao longo do jovem rio Nalón. O destino eram agora as terras de Sobrescobio e a Ruta del Alba, mais uma das maravilhas naturais do paraíso natural de Astúrias. É o reino do verde e da água, 14 quilómetros a pé a partir da aldeia de Soto de Agues, um reino de magia e de encanto.
Por Pola de Laviana e Cabañaquinta, inflectimos de novo para sul, em direcção ao Puerto de San Isidro e a outra maravilha desta zona sul de Astúrias, as Hoces del Rio Aller. Embora sem percurso pedestre, atravessámos na caravana mais este paraíso verde, no limite mesmo entre Astúrias e Leão. Já em Leão, atravessámos a Reserva de Mampodre e despedimo-nos das montanhas cantábricas, neste glorioso ano de 1999.
O dia 11 de Agosto era especial. No camping da cidade de Leão, assistimos ao maior eclipse solar do século, na Europa. Pouco depois do meio dia o Sol escondeu-se e parecia que ia anoitecer! Mas as trevas afastaram-se e a luz voltou de novo.
Estas férias contariam ainda, no regresso, com uma breve passagem pelo Lago de Sanabria, entrando em Portugal por Montesinho, e com um dia de descanso final no camping de Pomares, perto de Avô de onde regressámos a casa.
:: :: :: :: ::
:: :: :: :: ::
Un tiempu meyor…
Meados de Julho de 1999. Esbatem-se as últimas fragas, erguidas 10 anos antes pelas pragas do destino. O Sol recomeça a brilhar, renascemos como rio, que finalmente se começa a dilatar no horizonte…
DOENÇA BIPOLAR
Ora no cimo do monte,
se renasce como rio,
se dilata o horizonte,
sobrepuja o desafio;
ora à beira do abismo,
como se buraco negro,
quando o breu replica o sismo
e o ciclone severo;
ora o sol, brisa suave
e macios como o linho;
ora a mania mais grave,
depressão e desalinho
(Domingos da Mota)
Desde aquele verão de 1999 até ao presente, a brisa tornou-se suave, sem depressão nem desalinho. Sem «garantias vitalícias» mas nada na vida é vitalício. A caravana havia-nos levado já a um fim de semana de praia, em Albufeira. Duas semanas depois, a 26 de Julho, partíamos para as nossas segundas férias a dois para o norte peninsular! Avizinhava-se… «un tiempu meyor»!
«Un tiempu meyor», Llan de Cubel, grupo folk asturiano, 1999
:: ::
«Por fragas e pragas…», crónica e fotos (copyright) de José Carlos Callixto
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana)
:: ::
Leave a Reply