Tenho vindo semana a semana a recordar alguns textos antigos que escrevi sobre os modos de falar das gentes da minha terra. Hoje continuo na mesma linha e com a mesma intenção de fazer humor com coisas sérias. Vamos a isso…

Falemos de corruptelas populares: como é que as palavras usadas pelo Povo evoluem… Haveria centenas de casos. Mas escolhi meia dúzia para poder calmamente explicá-los e, sem pressas, dar alguma graça a este assunto. São as corruptelas populares. Escrevo isto com um gozo que nem imaginam. Na escola e nas minhas leituras de sempre, aprendi que são formas erradas. Mas divertem-me. Porque são as formas construídas pela minha gente em séculos. São formas corrompidas da língua, das palavras e dos sentidos das palavras e até da junção delas. Sem respeito pelas regras, regrazinhas, digo eu. Nem é bem «sem respeito», é mais, ignorando as regras, porque nem as conheciam. Ou seja, dito de outro modo: por norma, como soubemos todos logo que entrámos na escola, o Povo da minha terra diz as palavras de forma já de si distorcida. Isso é uma questão de pronúncia.
Mas aqui vou falar mais do que disso: vou falar de quando as pessoas distorcem o sentido das palavras originais e as empregam completamente ao lado do seu significado «dicionarístico», levando as palavras e as frases para um novo rumo… é uma língua ao lado da língua. É um dos lados vivos da língua. São as corruptelas. Acho-lhes imensa graça.
Falamos disto – pelo menos eu falo – com toda a ternura. Acho muita piada a estes falares. Um tipo cresce a ouvir aquelas coisas que, à luz da língua vernácula, à luz das regras de evolução dos termos e do seu significado, são verdadeiras barbaridades, mas gosto delas, das barbaridades, porque são as barbaridades da minha gente, da minha família naquele tempo, hoje já quase todos desaparecidos. Como não gostar disso? Que se lixe a gramática, que se lixem as regras de pronúncia. Somos ocelenses, temos muito sangue celta, somos uma mistura do diabo. Então por que é que a língua havia de ser pura? Por que raio, por que carga de água é que um qualquer latim seria melhor do que esta diversidade? Que raio de língua pura seria essa? O latinzinho dos invasores romanos? Meiguinhos como eles eram, então…
Vamos mas é às corruptelas que hoje aqui trago. Escolhi ilustrações de pessoas da terra, sobretudo da geração anterior à minha, em homenagem aos que tão belas corruptelas linguísticas usavam.
Três casos
Apenas três exemplos, com a explicação que acho que têm.
1 – Candauga
A «palavra» é formada pelos sons do que devia ser «cão de água». Significa «malandro», mas com um pouco mais de força e condenação. Quando me demorava muito tempo por lá (expressão típica também, que quer dizer «longe de casa», fora das vistas dos pais), ouvi-as das boas. E quase sempre lá vinha logo a abrir essa do candauga:
– Ah, candauga, isto é que são horas?
Chamo a atenção para a injustiça de não haver feminino neste epíteto. Também é certo que as raparigas não andavam assim «por lá», mas mesmo que andassem, não existe o feminino da palavra, que até seria uma cacofonia, quase:
– Ah, cadeladauga…
Não dá. Só os rapazes é que tinham as honras do título, com direito ao tratamento por candauga. Mais uma vez, dupla corruptela: primeiro, na pronúncia (cão de água deu candauga); depois, quanto ao sentido: candauga é corrécio, vadio. Ora o que é que o bicho algarvio, que até é muito trabalhador, tem a ver com isso? Na Wikipédia, aqui, lê-se: «O Cão de Água Português ou Cão d’Água Português é uma raça de cães criada originariamente no Algarve. Estes animais foram empregues como cães de trabalho por pescadores desde tempos imemoriais, mas no século XX tornaram-se uma raça rara.»
2 – Realengo
Eis uma frase muito usada na minha terra há 50 anos:
– Aquela não tem mesmo realengo nenhum.
Isto significa que a pessoa não se orienta, não tem juízo, faz muitas asneiras. «Realengo» é, originariamente, um adjectivo, aplicável a terrenos. Desta vez também vou ter alguma dificuldade em explicar como é que o povo aqui chegou, a este significado. Aqui, não há qualquer corruptela de pronúncia. Mas há um significado para mim misteriosamente inexplicável. Como é que uma coisa que é «do rei, real, régio» e que é um adjectivo, acaba na boca do Povo por dar um substantivo a significar juízo, cabeça direitinha? Não sei. Desta vez, não encontro a lógica da evolução da palavra.
A não ser esta: uma coisa que é do rei (Rei, no conceito popular do tempo da Monarquia) era algo muito certinho, legal, direitinho. Daí talvez a evolução para substantivo e para «bom desempenho? Na vida diária. Não sei. Fica a hipótese e o desafio para alguém mais imaginoso.
3 – Bincemento
Usa-se em frases bem determinadas:
– Não dá bincemento.
Isso significa: não despacha, não acompanha o ritmo. Virá certamente de «vencimento», aqui a significar algo como vitória, de vencer (não de ordenado), ter bom desempenho. Talvez seja esta a lógica da criatividade popular, muito mais imaginosa do que a dos letrados, que essa é muito simples e óbvia…
Na Raia, diz-se uma que também é interessante, e que chegou a algumas pessoas do Casteleiro: «tòril». Pronuncia-se assim mesmo, com o ò aberto. Mas a palavra é aguda: tòril. Como digo, foi trazida para o Casteleiro por pessoas da Raia. Usa-se em frases como:
– Os gatos fazem dali o tòril.
– Aquilo é o tòril dos cães.
– Isto é que está aqui um tòril!…
Suponho que já perceberam: significa: porcaria, chiqueiro. Onde foi o Povo buscar a palavra? Nada mais simples: Há aqui duas corruptelas: uma de pronúncia e outra de significado. O termo correcto seria «touril», como redil, como ovil: de acordo com o Dicionário Proberam: «touril (touro + -il), s. m.». E siginfica: «1. Curral de gado vacum. 2. Lugar anexo à praça de touros em que estes se guardam antes da corrida.»
Outros exemplos breves
Quando eu era pequeno fazia-me confusão que os mais velhos se benzessem dizendo «Em nome do padre e do filho…». Era assim que eu ouvia: «padre» (pároco). E não «Padre» (Pai, Deus), como hoje sei que as pessoas queriam dizer e bem, desta vez. Mas eu pensava que era em nome do padre Júlio, que era o pároco nessa altura, e que, para maior espanto meu, eu nem sabia que tivesse um filho. Ora eu benzia-me dizendo, como me ensinaram:
– Em nome do Pai… etc.
Vim a saber mais tarde que Padre e Pai «é» o mesmo. E que tudo vem do latim «pater» e das influências de certas zonas espanholas. Vale a pena ler isto: «Em português, o vocábulo pai (< lt. vg. ib. padre < lt. vg. patrem < lt. cl. pater) já é encontrado, embora raro, em textos do século XIII, vulgarizando-se a partir do século XVI, em prejuízo do então corrente padre, que já aparece na acepção de ‘pai’ num documento datado de 1075 em variação com uma forma pader. (…) Em alguns falares do espanhol, (os de Andaluzia, Chile e Porto Rico), em lugar de padre, tem grande extensão a forma vulgar paire, donde, o hipocorístico pay». Vale pois a pena falar do espanhol falado em certas zonas, porque nunca percebi como é que de «pater», latim, dava «pai» ao longo de séculos e por corruptelas sucessivas.
Outras expressões muito interessantes…
– Tem uma aduela a menos! – Não bate bem da bola, diríamos hoje. Aduela é cada uma das tábuas em arco dobradas a custo para fazer as pipas.
– Deu-lhe a macacoa – Ficou chateado; ficou doente; acho que pode ser aplicado a ambas as situações.
– Aquilo é uma sebenta – Ou ainda mais «genuíno»: – Aquilo é uma seventa. Suponho que sendo a sebenta o caderno de apontamentos, que andaria sempre suja, a palavra foi objecto desta corruptela de significado: refere-se a pessoa que seja porca, nada limpa.
– Fui a m’gir (mugir) as vacas. – Mas de facto a palavra devia ser «mungir»…
– Este vestido é dàcóti – Palavra grave, acento no «ó» – só na pronúncia, claro. Suponho que o percurso desta corruptela será: quotidiano daria cote. Cote passou a ser substantivo. E a roupa era dessa cote, portanto…
– Partimos daí potes – ouvia eu. Mas era a frase: «Partimos da hipótese.» Estavam sempre a dizer isso. E eu pensava que muitos potes eles partiam.
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Até para a semana, à mesma hora, no mesmo local!
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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