Numa manhã muito fria, seguimos do Fundão para Vilar Formoso, caminhando pela zona arraiana, cujas temperaturas negativas, há muito não se verificavam na meteorologia nacional. Íamos ao encontro de Carlos Lopes Clemente, reformado, ex-bancário, autarca, agente social, residente naquela localidade fronteiriça, natural de Vale de Espinho (Sabugal) e nascido a 7 de outubro de 1947. «Nasci no dia da Festa de Nossa Senhora do Rosário. Não podia nascer em melhor dia…», diz-nos logo no início da conversa.


O pai de Carlos Lopes Clemente tinha um comércio naquela aldeia raiana e, com a ajuda do contrabando, comercializava azeite, ovos, café e outros produtos essenciais.
Aos cinco anos, o seu pai emigrou para o Brasil, fixando residência em São Paulo, à procura de melhor vida, deixando a esposa e três filhos entregues à sua sorte. Regressou passados muitos anos, nunca ajudou a família, morreu em Lisboa, e foi sepultado em Vale de Espinho.
«A minha mãe foi uma grande heroína, arregaçou as mangas e mudou-se para o Sabugal», onde Carlos Clemente fez exame da 4.ª classe.
Os Missionários do Verbo Divino, principalmente o Padre Lúcio de origem brasileira, andavam por terras arraianas, passando pelas escolas primárias, convidando muitos jovens, como ele, a ingressar naquela Congregação, sediada no Tortosendo, na Covilhã. Assim aconteceu.
Num magusto em brincadeira normal destas ocasiões com um companheiro do Soito, (concelho do Sabugal), um padre mal humorado, não gostou da sua atitude e castigou-o. Carlos Clemente sentiu-se injustiçado e conseguiu através de um amigo do Tortosendo, dar conhecimento à sua Mãe. Esta indignada, vai àquela vila e deu por terminada a estadia do seu filho naquela casa, que durou um ano e meio. Mais uma injustiça, como aconteceu em outros locais. Os candidatos naquela época eram muitos, cometeram-se muitas injustiças e arbitrariedades. Hoje os Seminários estão vazios.
Seguiram-se os estudos secundários no Colégio do Sabugal, fundado pelo Dr. José Diamantino dos Santos, na Escola Secundária e no Colégio de São José, na Guarda, onde fez o 5.º Ano Liceal. O Professor que mais o marcou foi o Cónego Álvaro Quintalo, natural de Rendo (Sabugal), que em todas as disciplinas substituía os professores. É opinião generalizada que este Professor, em termos científicos, pedagógicos, matemáticos, literários, era uma figura relevante no ensino nacional. Não é por acaso que tem junto àquele Colégio uma estátua em sua memória.
O Serviço Militar Obrigatório iniciou-o na Escola Prática de Cavalaria, (Curso de Sargentos Milicianos) em Santarém, obtendo o posto militar de Furriel Miliciano. Passou pelo Regimento de Infantaria n.º 11 de Setúbal e pelo Quartel de Cavalaria n.º 7, no bairro da Ajuda em Lisboa, onde estava inserida a Companhia de Cavalaria n.º 2652, e foi mobilizado para a Guerra Colonial em Moçambique.
No período que antecedeu o embarque para África, foi convidado a fugir para França e Argélia, mas entendeu que «seria uma cobardia receber farda e dinheiro da mobilização e não cumprir este dever».
A viagem marítima não foi normal, porque houve uma acção de sabotagem no navio Império da Companhia Colonial de Navegação, tendo a necessidade técnica de reboque para o Mindelo em Cabo Verde. O contingente militar esteve ali uma semana, ainda deu para o arranjo de umas amizades femininas e todos embarcaram no Niassa.
Em Moçambique esteve vinte e sete meses de serviço militar na região de Tete, com sede do Batalhão em Furancungo e da Companhia em Vila Gamito. «Tempos de sangue, suor e lágrimas, de sacrifício, ansiedade, sofrimento, valentia. Por milagre não morri.»
«Na parte final da comissão e junto à fronteira, fizemos um pacto com o “inimigo”, dizendo-lhe que “estes territórios são vossos, nós só estamos aqui a cumprir ordens de Lisboa”.»
Regressou em Março de 1972, iniciando a sua actividade de bancário em Vilar Formoso no Pinto Magalhães Bancários. Ao fim de um ano, passou para Banco Pinto de Magalhães, seguiu-se a União de Bancos Portugueses, Banco Melo, Banco Millennium, Banco Comercial Português, onde terminou esta longa caminhada de créditos e débitos, durante vinte e oito anos.
Recorda… «Sempre trabalhei em prol dos clientes, a razão de ser das instituições bancárias. Naquela altura, em termos de atribuição de juros, era uma ciganada. Aos emigrantes, aos arraianos, atribuía-lhes a taxa máxima. Um dia, com a chegada de uma grande avalanche de emigrantes, estive 24 horas no banco, a dormir debaixo do balcão, para receber os sacos repletos de dinheiro, francos, marcos, francos suíços… a fim de serem depositados. A minha vida bancária dava para escrever um livro, mas fico por aqui… Talvez por olhar demasiado pelas preocupações dos clientes não me atribuíram mais um nível profissional.»
Interpelado sobre o que pensa dos bancos e dos funcionários, afirma: «Os bancos vivem unicamente com o objectivo de lucrar milhões. Quanto aos funcionários, são máquinas e alguns com pouca empatia com os clientes.»
Num olhar para a vida enquanto autarca, Carlos Clemente, nos tempos a seguir ao 25 de Abril, foi convidado pelo dr. Almeida Santos para ser candidato pelo Partido Socialista à Câmara Municipal do Sabugal. Aceitou apenas ser cabeça de lista para a Assembleia Municipal nas listas do PS, mas como independente. Assim foi eleito para a Assembleia Municipal do Sabugal.
Em 1993, foi eleito pelo Partido Social Democrata para Presidente da Assembleia de Freguesia de Malcata. Conseguiu que a ponte da Barragem do Sabugal se mantivesse como está, poupando-se tempo, embora os assessores da barragem quisessem desviá-la pelo lado sul e fazê-la passar pela Torrinha. Com um abaixo assinado pela população, o povo de Malcata conseguiu o que queria.
Como independente, concorreu às eleições de Vilar Formoso, sendo Tesoureiro da Junta de Freguesia de Vilar Formoso, e no mandato seguinte Presidente da Junta de Freguesia de Vale de Espinho.
Foi membro da Comissão Instaladora da Reserva da Malcata: «Bati-me sempre por contrapartidas para os beneficiários e pela defesa dos interesses do concelho do Sabugal, principalmente daquela Reserva Natural.»
No campo social, Carlos Clemente, apoiado pela sua esposa, prof.ª Graciete Clemente, conseguiu, com grande resiliência, que o povo de Malcata tivesse um Lar. Contactando todas as entidades oficiais, Segurança Social, Governo Civil, Autarquia, ministérios governamentais, Fundação Gulbenkian – e ainda com a ajuda de sócios, peditórios, bem como com a doação do terreno pelo sr. Manuel Cidades –, o Lar para Idosos da Malcata tornou-se uma realidade, obedecendo a todas as regras e normas exigidas. Iniciou-se com vinte e cinco utentes, ampliaram-se as obras para trinta e oito. As obras nunca pararam e hoje tem capacidade para quarenta utentes.
Mais tarde comprou-se um terreno à igreja e construiu-se um Pavilhão, a que foi atribuído o nome de Carlos Clemente. Depois ampliou-se o Pavilhão e foi construído um segundo Lar com capacidade para trinta e um idosos, com o nome de São Barnabé, orago de Malcata. Os dois lares foram licenciados e são uma grande valia social e humana para as gentes de Malcata. Frisou o nome do Director da Segurança Social na altura, que muito colaborou para a abertura dos Lares do concelho do Sabugal, dr. Jacinto Dias.
Estamos na presença de um cidadão que respira bairrismo arraiano por todos os poros, que manifesta esse orgulho e que muito colaborou para o bem daquelas gentes, que lhe devem estar sempre gratas.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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