Toda a noite choveu intensamente. Embora tenha um leito aconchegado num quarto confortável, não consegui dormir. Mal fechava os olhos, o meu pensamento voava para a minha janela do tempo. E lá estava eu, entre as aflições e medos da minha gente e dos nossos animais.

Hoje, quem não possui um animal de estimação, talvez não consiga perceber como é o medo e a dor de perder um animal que se ama. Para além desse afecto, havia um enorme sentimento de gratidão e também a angústia da perda dos seus serviços e ajuda. É que, no meu tempo de menina, não havia tractores nem alfaias agrícolas sofisticadas. Havia arados, charruas, enxadas, sachos, ancinhos, malhos, forquilhas. Eram as vacas que puxavam o arado no lavrar da terra e os carros que carregavam as colheitas, os toros da lenha, as dornas com os cachos; eram os cavalos e burros que nos levavam mais longe e, tantas vezes, andavam «à nora» a puxar os alcatruzes para se regar! Os animais de capoeira davam-nos os ovos que, muitas vezes, serviam de moeda para comprar o pão em Navas Frias; e os «marranos» eram sacrificados para nossa alimentação.
Hoje não estava a pensar falar da aflição das cheias que punham toda a gente de sobreaviso, de noite e de dia, com medo que as águas entrassem nas lojas sem terem onde e como pôr os animais em segurança.
Desta vez, estava a lembrar-me das troupes de ciganos que só podiam permanecer até quarenta e oito horas numa localidade.
Naquele entardecer, chovia torrencialmente, uma chuva grossa e gélida. Chegaram ao Largo do Enxido duas pequenas carroças, carregadas de catraios com seus pais e avós. Tinham guarda-chuvas enormes que, mesmo sendo grandes, não escudavam da chuva aquela pobre gente a escorrer água da cabeça aos pés. As crianças tiritavam de frio e tinham as caritas vermelhas e cheias de água ou de lágrimas, talvez!
Traziam alguma lenha na carroça. Mas onde poderiam acender o lume? No Verão era fácil. Mas com aquele tempo, meu Deus!
O meu vizinho, o ti João Reino, não se conteve e foi chamá-los para o curral onde tinha o alpendre da lenha. Foi ali que passaram duas noites e um dia. O ti João deu-lhes um feixe de palha e umas sacas de sarapilheira para se acomodarem.
A ti Zefa fez-lhes uma panela grande de caldo escoado e todos comeram do barranhão.
Houve uma coisa que nunca esqueci. Antes de todos meterem a colher no barranhão, a mãe dos garotos, encheu duas malgas para os avós, só depois tiveram licença de começarem eles a comer.
O ti Zé Ramos tinha duas vacas a dar leite, disse à ti Isabel para lhes levar um poquenino para a canalhita.
No dia da abalada, ainda nem o luscofusco abrira, lá iam eles de abalada não viesse a guarda por lá.
No Verão seguinte, passaram novamente pela aldeia e trouxeram duas cadeiras de buinho para oferecerem ao ti João e à ti Zefa. E, para mim, trouxeram-me um «mochinho» para me sentar à lareira.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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