Foi nesta Bruxelas acolhedora e generosa que aterrei numa noite húmida e abafada de Julho de 1972 em que a trovoada não tardaria a rebentar, mesmo antes de chegar a casa do meu porto de abrigo onde chegaria embebido de água até aos calcanhares.

Que estranhas boas-vindas! Até parece que os deuses tinham pressa de me batizar, de me embrenhar neste clima em que há mais momentos de céu com cinzentas nuvens que de brilhante sol. Parece que não queriam permitir que perdesse tempo para compreender que não era necessário estágio de adaptação. Tinha de andar depressa, não havia tempo a perder. Notei, porém, a deselegância, a maneira ríspida com que esta cidade gostaria de me integrar no seu ventre que transformou milhares de cidadãos que chegaram das quatro partes do mundo e que já fizeram nela o sue ninho pátrio ou mátrio e tentarem renascer para uma nova vida.
Aqui iria viver uma segunda vida. Sentia a coragem nas minhas duas mãos e tinha ainda na mente as recentes palavras que meu pai me tinha dirigido ao dar-me o seu último abraço de despedida: «Continua a estudar e não te esqueças que ter um bom curso é como ter uma boa pastoria de cabras. Com ele poderás viver!»
Inebriado com a profusão de «sedes de sapiência», talvez tenha exagerado nas guloseimas do saber, ao mesmo tempo que cumpria com todo o rigor os meus deveres de chefe de um novo serviço que tive a honra de inaugurar.
Após os meus estudos em ciências sociais, em 1975, o estado português decidiu implementar um novo ciclo para trabalhar com os portugueses no estrangeiro. Tratar os emigrantes como criminosos e abandoná-los à sua sorte não era digno de uma Estado moderno. Era necessário começar um novo ciclo com perpectivas diferentes, com outras abordagens, dando um outro rumo ao trabalho com os nossos compatriotas no estrangeiro.
No Verão quente de 1975, nada perspectivava que o único lugar de responsabilidade do trabalho com a emigração portuguesa na Bélgica fosse concedido a quem andava fora da agitação política. Lembro-me que os concorrentes hasteavam as suas bandeiras matizadas de vermelho, a única via que lhes poderia abrir as portas.
Mas também naquele verão quente de 1975, no cerne do poder, havia gente honesta, que tinha o sentido de Estado, servidora do interesse público que olhava mais para a competência que para a cor das insígnias arvoradas na lapela do casaco.
Sem nada a perder e desprovido da menor esperança, deitei o barro à parede e apressei-me a copiar as três últimas páginas da minha tese de fim de estudos intitulada «Une expérience d’animation parmi les émigrés portugais» que mais tarde vim a encontrar no catálogo da Biblioteca Nacional, em Lisboa, o que muito me orgulhou.
Naquele tempo em que se pretendia fazer um novo Portugal, aquelas três páginas teriam certamente ajudado a formular objectivos e orientações nos novos serviços colocados junto das representações diplomáticas no estrangeiro para ajudar a adquirir uma nova imagem, porque nos tempos da «antiga senhora» ia-se aos Consulados com duas pedras na mão, já que os representantes do Estado eram os culpados da simples condição de emigrante.
Tive então a honra de fazer parte daquela nova leva de funcionários do Estado português que repuseram uma nova uma dignidade na emigração portuguesa e que foram colocados em postos onde havia um grande número de emigrantes. Era necessário tratá-los de outra maneira. Chegar a um país desconhecido e encontrar má vontade, desdém, nos serviços do nosso país, isso é que era criminoso!
Por isso, ter trabalhado no serviço social e jurídico junto da Embaixada de Portugal em Bruxelas foi dos lugares que mais me enriqueceu, pessoalmente. Pude contactar pessoas ricas, pessoas pobres; visitei portugueses em cadeias, em asilos psiquiátricos, acompanhei-os até à fronteira, libertei-os. Vi pessoas a chorar, limpei-lhes as lágrimas, não os deixei cair. Foram vidas que ainda hoje me acompanham e cujos rostos constituem uma fonte inesgotável de inspiração. Direi como a escritora bielorrussa Svetlana Alexievitch, Prémio Nobel da Literatura:
«Nunca deixarei de me surpreender com o quão apaixonante pode ser uma simples e normal vida humana!»
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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