A Síria encontra-se numa encruzilhada. Os seus novos dirigentes estão a tentar estabelecer boas relações com a maioria dos países do Médio Oriente e a procurar ganhar a confiança da Comunidade Internacional. Contudo, é cedo para tirar conclusões sobre a evolução política interna e externa deste país, cujo papel é absolutamente crucial para o futuro desta conturbada região do Mundo. (parte 2 de 2).

Arábia Saudita – Principais objetivos prosseguidos face à Síria
A já citada deslocação oficial de dois ministros do novo regime da Síria a Riade na Arábia Saudita, poucos dias depois da sua chegada ao poder a 8 de dezembro, revestiu-se de um significado particularmente simbólico para ambas as partes.
De facto, esta visita oficial significou, por um lado, que a Arábia Saudita está a tentar convencer o novo regime sírio de que é um parceiro confiável. Por outro lado, e, como realçam alguns analistas internacionais, o facto de o novo governo sírio procurar reforçar os laços com a Arábia Saudita também significa que esta estratégia pode ajudar a Síria a evitar ficar demasiado dependente da Turquia.
Mas quais são os principais objetivos da Arábia Saudita que justitificam a sua aproximação ao atual regime da Síria?
Definindo-se como a principal potência regional do Golfo Pérsico, a Arábia Saudita está geográficamente mais longe da Síria do que a Turquia. Mas, nos planos ideológico, económico e estratégico, a Coroa Saudita também ambiciona exercer uma forte influência sobre a Síria.
No plano ideológico, a Arábia Saudita deseja influenciar a orientação do novo regime sírio e isso significa moderar a sua orientação islâmica. De facto, a Coroa Saudita pretende que o HTS se afaste das suas ideias mais radicais do passado. Outro objetivo da Arábia Saudita em aproximar-se do novo regime sírio consiste em fazer cessar o fluxo, da Síria para o Golfo Pérsico, de uma droga ilegal – de síntese da família das anfetaminas conhecida pelo nome comercial de Captagon – que, durante anos, o anterior regime de Bashar al-Assad produziu e exportou em massa para sustentar financeiramente a elite síria, numa economia paralela que, na prática, transformou o país num autêntico narco-estado.
No plano económico, tal como a Turquia, a Arábia Saudita olha para a possibilidade de reconstruir a Síria como uma oportunidade. As empresas sauditas desejam obter «contratos» que os habilitem a serem as responsáveis pela reconstrução da Síria. Aliás, o líder sírio Ahmed al-Sharaa, que passou a infância em Riade, já reconheceu que admira a economia saudita. «A Arábia Saudita tem um grande papel a desempenhar no futuro da Síria e orgulho-me de tudo o que já fez por nós», realçou Ahmed al-Sharaa numa entrevista.
Na recente reunião que teve com os novos dirigentes sírios em Riade, o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Faisal bin Farhan Al Saud, fez questão de reafirmar o apoio saudita para «tudo o que garanta a segurança e a estabilidade da Síria, ao mesmo tempo que preserva a sua soberania e independência». As duas partes discutiram formas de apoiar «tudo aquilo que contribua para atingir um futuro próspero de segurança, estabilidade e prosperidade para a Síria e o seu povo, para preservar as instituições estatais sírias, reforçar as suas capacidades e reconduzir a Síria ao lugar que lhe pertence nos mundos islâmico e árabe».
No plano estratégico, esta aproximação da Arábia Saudita ao novo regime sírio parece também ser especialmente importante para o HTS. Efetivamente, a aproximação deste grupo islâmico que se tinha afirmado na Síria em 2017 como um movimento jihadista, deseja agora ter boas relações com os dirigentes do Estado árabe que lidera os sunitas, a saber a Arábia Saudita. E esta posição traduz um esforço do novo regime sírio em apresentar-se, agora, como um intermediário moderado – deixando para trás qualquer ideia de estabelecer um Califado ou uma Internacional Islâmica, que possa pôr em risco as monarquias absolutas de vários Estados do Golfo Pérsico.
Com efeito, o apoio saudita pode ser importante para que o HTS estabeleça boas relações com outros Estados árabes sunitas, como os Emirados Árabes Unidos (confederação árabe que, no passado, foi particularmente cautelosa a estabelecer relações amistosas quando forças políticas islâmicas derrubaram governos islâmicos). Ou seja, manter uma boa relação com a Arábia Saudita permite ao novo regime sírio transmitir a ideia de que o Médio Oriente não será palco de uma nova «Primavera Árabe», à semelhança do que sucedeu, por exemplo, no Egito e noutros países do mundo árabe, no início da década de 2010.
Ora, a este respeito convém sublinhar que, por força das ligações que ainda mantém com «Irmandade Muçulmana» e com grupos congéneres, a Turquia não está tão bem colocada para transmitir essa mensagem de tranquilidade aos países do Golfo Pérsico. Pelo contrário, a Arábia Saudita consegue fazê-lo, pois diplomaticamente sempre tentou destronar a influência da «Irmandade Muçulmana» e dos seus associados. Além disso, a aproximação de Riade a Damasco é também uma forma de diminuir a influência da Turquia no Médio Oriente, de que a liderança saudita sempre desconfiou.
Por outro lado, a Arábia Saudita também obtém outra vantagem em termos geopolíticos, com a sua proximidade ao regime sírio. Acima de tudo, ganha um aliado à custa do seu outro rival… o Irão. Na verdade, a Coroa Saudita sempre considerou a Guarda Revolucionária Iraniana como uma ameaça política e ideológica ao seu país.

Relações entre a Síria e Israel
Há ainda outra questão relevante que levanta algumas interrogações no mundo da geopolítica do Médio Oriente: «Como passará a ser, doravante, a relação entre Israel e a Síria?»
Até agora, as indicações que o HTS tem dado é que não pretende confrontar diretamente Israel. Em declarações prestadas à NPR News o novo governador de Damasco, Maher Marwan, afirmou que «a Síria não tem receio de Israel. O nosso problema não é com Israel. Não queremos envolvermo-nos em nada que ameace a segurança de Israel ou a segurança de qualquer outro país».
Confrontado com os bombardeamentos israelitas feitos em território sírio após a queda de Bashar al-Assad, Maher Marwan desvalorizou esta questão. «Israel pode ter sentido medo no início. Portanto, bombardeou um pouco», comentou o governador de Damasco, assegurando todavia que quer ver uma «Síria livre e segura. Deve sentir-se segurança, não medo».
Face a estes esforços diplomáticos da nova liderança da Síria em manter boas relações mesmo com países que, como Israel, poderiam ser considerados hostis, tudo indica que o novo governo de Damasco está a fazer tudo para reforçar o apoio político, diplomático e financeiro ao seu país um pouco por toda a parte no sistema internacional. Para esse fim, a Síria está a procurar aproximar-se de alguns membros relevantes da comunidade internacional e do Médio Oriente, que estão dispostos a apoiá-la, como os Estados Unidos, a Turquia, a Arábia Saudita, os Estados árabes e os Estados do Golfo Pérsico, e parece empenhada em capitalizar a boa-vontade que atualmente lhe está ser concedida por estes países.
Efetivamente o novo regime da Síria ambiciona ver-se livre da influência quer da Rússia, quer do Irão (ainda que, como atrás se viu, não feche completamente as porta a Moscovo). Ou seja, ignorando por agora motivações políticas ou ideológicas, a atual liderança síria defende que todos aqueles que estejam disponíveis para apoiar a Síria serão naturalmente bem-vindos.

Em conclusão
Resulta do exposto que a estratégia que está a ser seguida pelo novo regime da Síria em matéria de política externa parece refletir uma nova abordagem inteligente e pragmática deste país no domínio das relações internacionais.
Contudo, no plano interno, quais serão os próximos passos do governo de transição sírio no curto e no médio prazo?
A verdade é que os desafios que este governo tem pela frente se afiguram de grande monta, exigindo dele uma enorme capacidade política para lhes fazer face com êxito.
De facto, tratando-se como se trata de um país de cultura predominantemente muçulmana, o novo governo sírio vai ter que gerir politicamente uma população que é, por assim dizer, um verdadeiro mosaico humano composto por grupos étnicos, religiosos e culturais muito diversos e potencialmente conflituantes entre si.
Antes da conquista árabe levada a cabo pelo Califado Omíada em meados do século VII, a população síria era composta por povos semitas autóctones, designadamente os assírios, os arameus e os cananeus. Mas qual é a situação atual da Síria do ponto de vista étnico, religioso e cultural?
1 – Do ponto de vista étnico – Os árabes sírios, juntamente com cerca de 600 mil árabes palestinos, representam mais de 74% da população da Síria.
O segundo maior grupo étnico neste país são os curdos que representam cerca de 10% da população. A maioria dos curdos residem na região nordeste do país e a língua predominante falada por esta etnia é o curdo.
A população síria abrange ainda outros grupos étnicos com línguas, crenças religiosas e culturas específicas, principalmente os turcomanos (entre 500 mil e um milhão de pessoas), os circassianos (menos de 100 mil), os gregos e os arménios (aproximadamente 100 mil). A Síria também abriga uma pequena população de judeus, cujas comunidades estão concentradas em Damasco, Alepo e Qamishii. Por sua vez, as comunidades dos drusos estão estimadas em cerca de 500 mil e vivem principalmente em Jabal al-Druze, uma antiga região autónoma da Síria até 1936. Enfim, existem no país outras minorias, por exemplo, as comunidades iazidis que vivem no nordeste da Síria, designadamente na zona de Al-Jazira mas de cuja população não existe, neste momento, uma estimativa credível.
2 – Do ponto de vista religioso – Os árabes sírios dividem-se entre sunitas (cerca de 60% da população) e xiitas (cerca de 14%), incluindo os xiitas duodecimanos, os alauitas e os ismaelitas.
Por sua vez, os cristãos da Síria (cerca de 2,5 milhões de pessoas) estão divididos em várias confissões: a Igreja Ortodoxa Grega de Antioquia representa 35,7% da população cristã do país; a Igreja Católica Romana, cujos fiéis seguem ritos distintos (arménio caldeu, latino, maronita, siríaco ou greco-melquita) representa cerca de 26,2% da população cristã; a Igreja Ortodoxa Síria conta com 22,4% dos cristãos; a Igreja Apostólica Arménia conta com 10,9%; e a Igreja Assíria do Oriente e várias outras confissões de menor amplitude representam o restante da população cristã da Síria.
A este já vasto mosaico humano que representa, por assim dizer, uma «versão reduzida» do Médio Oriente, é preciso acrescentar a implantação, em vários pontos do centro e do leste do país, de grupos terroristas do chamado Estado Islâmico, com células ativas e células adormecidas que ambicionam aproveitar-se de um eventual futuro vazio do poder no país para aumentar e mesmo recuperar a sua anterior influência na Síria.
Já se vê do exposto, que não será fácil ao novo governo sírio gerir a contento todos estes interesses étnicos, religiosos, culturais e ideológicos que continuam a existir na Síria.
Para já, as intenções declaradas numa entrevista recente pelo líder do HTS Ahmed al-Sharaa no sentido de respeitar não apenas os direitos humanos destes grupos com culturas e interesses tão diversos, mas também de desenvolver um bom relacionamento com os paises vizinhos e a comunidade internacional, são naturalmente de bom augúrio para os tempos próximos e merecem, consequentemente, ser saudadas e apoiadas.
Todavia, como Ahmed al-Sharaa referiu nessa entrevista, a consagração jurídica dos direitos humanos atrás citados e de uma nova política externa que deverão passar a figurar numa nova Constituição da Síria poderá demorar até três anos e vai ser necessário aguardar, depois, mais um ano para a realização de eleições livres no país.
Ahmed al-Sharaa prometeu «não excluir ninguém» neste processo político em curso iniciado com o golpe de Estado de 8 de dezembro.
Mas, tendo em conta os fatores internos atrás descritos, a que se somam os fatores externos ligados a eventuais desígnios expansionistas de países vizinhos (Turquia, Arábia Saudita, Irão) ou a eventuais ambições geopolíticas de grandes potências mundiais (Rússia ou EUA), só o tempo dirá se o novo regime da Síria terá a capacidade e as condições políticas necessárias para gerir com sucesso este país do Médio Oriente cujo papel é absolutamente crucial para o futuro desta conturbada região do Mundo.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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