Nestes últimos tempos, que não serão os últimos, a Rua do Benformoso ao Martim Moniz em Lisboa tem andado na boca do mundo e de todos nós.

Nos tempos passados, jovem e já com mais idade, a rua era mesmo do Benformoso. Quando a conheci, há mais de cinquenta anos, já era um território cheio de vida, entenda-se, não a vida higienizada em que se transformaram as grandes capitais europeias, mas onde se cruzavam todo o tipo de pessoas, do contabilista aprumado às mulheres que exerciam a mais antiga profissão do mundo. Não faltavam, na verdade, as casas de alterne, muitas habitações onde se alugavam quartos nauseabundos, onde durante algum tempo, nunca ultrapassando uma hora de estadia, jovens e mais velhos concretizavam as suas experiências e aventuras sexuais.
Nos princípios da década de setenta, alguns dos fregueses daquela via tinham problemas com justiça. Um dia, recordo agora, uma jovem assistente social dos quadros dos Serviços Prisionais teve de fazer um inquérito junto do familiar de um recluso da Colónia Penal Agrícola de Sintra. Quando chegou ao Benformoso, um grupo de polidores de esquinas proferiu palavras muito desagradáveis e alguns piropos. O marido, que a acompanhava, interpelou-os dizendo para terem muito cuidado com os comentários, porque “esta senhora é uma alta funcionária do Ministério da Justiça e pode telefonar para a Judiciária”. O líder do grupo perguntou: «Quem é o senhor?» e o marido respondeu: «Sou o motorista da senhora.» Passados rápidos minutos, o grupo estava desmantelado sem qualquer espécie de violência.
Recordo também a extraordinária gastronomia nos restaurantes da rua. Havia uma tasca, que frequentava com um grupo de estagiários do CEJ (Centro de Estudos Judiciários), onde almoçávamos a melhor feijoada das nossas vidas, confeccionada pelas mãos de uma cozinheira minhota.
Anos mais tarde, voltei a essa rua multicultural para integrar o elenco do filme «Guerra», de Marta Ramos e José Oliveira, com o saudoso actor José Lopes a contracenar com antigos combatentes de carne e osso. Durante vários dias, por etapas, as filmagens decorreram nas instalações do Grupo Excursionista e Recreativo Os Amigos do Minho, que à entrada tinha um aviso que nunca mais esqueci: «Entra amigo; o pão que temos aqui, neste pequeno abrigo, também chega para ti.»
O filme «Guerra» concretizou-se com sucesso e é hoje um marco no cinema português, já apresentado em diversas salas de cinema e importantes festivais nacionais e internacionais, e também no Fundão.
Num ambiente sempre fraterno, recordo as refeições familiares confeccionadas naquela instituição cultural e recreativa, servidas por mãos amigas num terraço à sombra de uma velha videira.
Infelizmente, com a decisão municipal de deixar extinguir instituições como «Os Amigos do Minho», a centenária videira já não voltará a dar uvas, e Lisboa perdeu um espaço belíssimo e acolhedor para eventos culturais, gastronómicos, desportivos…
Por estas memórias e outras, sempre tive carinho pela Rua do Benformoso. Gosto do seu comércio variado e da mistura de pessoas e comunidades de todas as partes do mundo.
Há, no entanto, alguns políticos oportunistas, alimentados por parte da comunicação social sensacionalista e apaniguados das redes sociais, que querem fazer-nos crer, contra todos os factos e evidências, que é uma zona exclusiva de crime e insegurança. Não acredito de todo nessa versão. No que me toca, passei muitas vezes pela Rua do Benformoso, por aqueles espaços históricos e humanos e nunca tive qualquer problema.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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