Toca o despertador…

«Alexandre. Alexandre! Acorda por favor. Temos de nos despachar!»
A cabeça dele estalava com o som estridente da Embaixadora.
«Está bem, mulher. Hoje onde vamos?»
Nem respondeu. Já estava sentada na cama a ler o discurso. Com a caneta azul ia fazendo emendas…
«Vá! Despacha-te temos de ir ao Centro Cultural Africano. Atenção ao dress code.»
Ela ia discursar no Centro Cultural Africano, em Rairobi, onde estavam representantes de diversos estados, inclusivamente Embaixadores de países europeus.
Ser acompanhante de uma diplomata cheia de dinâmica não é fácil. A diferença de idades é que ajuda, porque a experiência do «mais velho» nestas andanças é útil em muitas situações.
Encontraram-se ao pequeno-almoço. Ele habitualmente com o seu café africano e tostas com manteiga, intercalando com sumo de laranja. Ia calmamente lendo o jornal em língua inglesa. Ela com o seu discurso e a caneta nas mãos. Sempre a corrigir. Tomava o chá já frio sem se aperceber.
A viagem foi silenciosa. A viatura era blindada não se ouvindo nada do que se passava na rua. Ela continuava sempre a ler o discurso, fazendo às vezes cara preocupada, enquanto o marido ia lendo silenciosamente o seu jornal.
Os ritmos de vida chocavam. Mas era fundamental manter o equilíbrio. Mesmo sendo acompanhante, com muito tempo livre, tinha de respeitar as funções da esposa e da responsabilidade que ela carregava consigo.
O discurso acabou por ser do agrado da maioria dos presentes com uma grande salva de palmas. A sua estratégia baseava-se na defesa da cultura dos povos, mas com respeito por parte dos estrangeiros residentes, abrangendo hábitos como, igualmente, costumes.
Um diplomata tem de saber o modo de vida do país para onde foi destacado e principalmente, para além das relações bilaterais, também envolver trocas de experiências culturais entre os povos, essenciais para a consolidação da cooperação: «Não basta a existência de negócio por negócio, é igualmente muito importante o padrão cultural acompanhar todo um processo de progresso que consolide relações mais fortes entre os países.»
A caminho da embaixada o casal falou pouco. O desgaste emocional dela precisava de desabafo. Há sempre insegurança no impacto da plateia. Porém, o marido deu apoio, como normalmente o faz: «Foi uma grande ideia que tu lançaste. Reforçar as relações com troca de experiências culturais. Mais consensual não podia ter sido.»
O resultado revelou-se num acordo na promoção de exposições de arte em ambos os países tendo um apoio político forte. Muitas obras foram compradas. O negócio tinha «pernas para andar».
Com esta abertura a Embaixadora começou a sofrer pressões de grupos económicos que se queriam instalar no país. Em conversa com o marido, num dos serões, lamentava que os europeus e americanos, principalmente, só pretendiam retirar recursos, nem dando possibilidade que alguma manufactura de recursos pudesse ser efectuada em África. Esta intransigência poderia levar a um falhanço da aproximação.
Ao saber que o Primeiro-Ministro desejaria uma visita oficial, para convencer o Presidente do Ruganda a aumentar as concessões mineiras, ficou muito apreensiva. Duvidava que o tratamento do minério pudesse ser feito neste país. Porém, solicitou o apoio do marido.
Ele acabou por marcar um almoço com o assessor do Ministro dos Recursos Naturais. A ideia seria no processo de negociação de eventuais novas concessões, o projecto de investimentos pudesse incluir o processo de transformação, nem que fosse na fase preliminar do minério extraído.
Porém o assessor nas entrelinhas, deu a entender que alguns bónus que o governo receberia para outros investimentos poderiam ficar comprometidos. Mas o marido da embaixadora insistiu. O bónus sempre existiria só que em menos valor. Mas o impacto internacional de um pais africano ter parte da manufactura seria sempre vista como uma vitória contra os grandes interesses económicos estrangeiros. Ficou acertado que nas próximas semanas o assessor diria qualquer coisa.
A embaixada tinha um adido comercial e o esposo pede-lhe uma audiência, logo concedida tendo em conta que se tratava de alguém muito próximo da Embaixadora.
Trocaram várias impressões sobre os negócios entre os países, mas principalmente quais as empresas estrangeiras que mais investiam e em que actividades económicas. De facto, a extração predominava e era controlado por grandes grupos económicos sediados na Europa, Turquia e Extremo Oriente. Ou seja, em sua opinião, seria muito difícil entrar neste mercado.
No entanto, o negócio de exportação de objectos de arte dava sinais de crescimento. Quem seria o despachante?
Sendo Procurador de profissão, e com vasta experiência em contrabando, entende por meios próprios investigar detalhes da exportação através de amigos empresários noutras áreas, como produtos agrícolas.
Soube que, de facto, existia uma grande empresa que exporta e importa diversos produtos com facilidade para os portos de Amesterdão e Sri Lanka.
Neste contexto, tenta a sua sorte no agendamento de um encontro com a administração dessa empresa. Porém, foram-lhe criadas várias dificuldades atendendo a ser um ilustre desconhecido.
Sentindo uma frustração de não conseguir avançar com a investigação, certo dia recebe uma chamada da Europol. Era um antigo colega seu conhecido, de nacionalidade francesa, pedindo um encontro em Paris.
Desculpou-se com a mulher, que gostaria de ir passar uns dias em Paris, fundamentalmente para ver exposições e um concerto que eventualmente conseguisse ingresso.
«Descobrimos um diamante escondido num busto artesanal em pau preto proveniente do Ruganda. O rasto veio do Porto de Ankaba tendo sido despachado em Amesterdão. A dita peça tinha como destino França, mas as nossas autoridades aduaneiras descobriram a tempo. Dentro do artefacto descobriu-se uma pedra preciosa, mas para a obter foi necessário destruir praticamente todo o busto.»
Em face do ocorrido, mostrou disponibilidade em ajudar, mas salientou as dificuldades para o curso da investigação.
Já em Rairobi tentou por todos meios que tinha ao seu alcance. No entanto descobriu que o dito despachante também exportava pedras preciosas oriundas do Zimbabué e Madagáscar.
Tentou, com sucesso, um encontro com uma empresa de referência que trabalhava no negócio de pedras preciosas. Era europeia tendo também no seu capital acionista uma empresa israelita.
A reunião foi muito afável parecendo que não haviam segredos a esconder. As pedras vinham em bruto para as empresas de lapidação e depois seguiriam para a indústria de ourivesaria ou de corte.
Basicamente o controlo do minério que entrava e saia do Ruganda, era efectuado pelo próprio governo, ou seja, pelo Ministério dos Recursos Naturais.
Não esconderam que nunca havia a certeza do peso da carga, mas mesmo assim o negócio não deixava de ser lucrativo. Era importante não criar embaraços com as autoridades.
Deixando-o muito pensativo decidiu passar algum tempo em actividades sociais com a esposa, mesmo para se resguardar e também despistar algum seguimento que eventualmente estivesse a ocorrer.
Certo dia recebe o telefonema do assessor do Ministério dos Recursos Naturais a marcar um novo encontro. Desta vez seria no seu gabinete…
«Após alguma discussão no seio do Governo, o nosso ministro, informou-me que estaria aberto a negociar desde que a lapidação fosse completa e não parcial.»
As notícias não poderiam ser as melhores.
Falando com a Embaixadora, foram logo promovidos contactos bilaterais para estudar a viabilidade da futura concessão incluir também a lapidação.
Todos os aspectos foram acautelados e, meio ano meio depois, o contrato da nova concessão foi assinado em Rairobi na presença dos líderes de ambos os países.
Enquanto isso Alexandre, numa esplanada em Rairobi, tomava uma cerveja bem fresquinha a festejar o sucesso de sua esposa, tocando, entretanto, o telefone. Era da Europol.
Ao atender houve-se uma explosão.
«Alô, Alô Alexandre, foge daí rápido…»
Não teve tempo de ouvir.
Alguém o baleou na cabeça!
Kuito, 11 de Janeiro de 2025
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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