Advertência | A Gíria Quadrazenha foi transmitida oralmente. Provavelmente, os seus primeiros falantes eram analfabetos ou, sendo uma linguagem secreta, não pretendiam que outros a conhecessem. Daí que apenas tenham chegado até nós 302 termos da Gíria. Quando surgiu? É difícil dizer, sobretudo por não haver documentos escritos. A mesma interrogação se coloca sobre quem a criou. Já escrevi vários artigos sobre o assunto que foram publicados aqui no «Capeia Arraiana». (01)
Novo Dicionário da Gíria Quadrazenha
Como surgiram as gírias? São linguagens de grupos profissionais ou criminosos. O segredo é a alma do negócio. Neste caso o segredo era a alma do conhecimento de quem as usava.
Mil anos antes da era cristã já os construtores do Templo de Salomão usavam linguagem secreta na sua arte e secreto era o saber da construção.
Os Templários adquiriram esse saber ao viverem nas ruínas desse Templo nos séculos XII e XIII. E trouxeram-no para França, donde eram originários os oito primeiros Templários. Os construtores das catedrais em França chamaram maçonaria («maçonnerie») à arte de construir as catedrais, que aprenderam com os Templários. «Maçon» significa pedreiro em francês. Portanto, maçonaria não tinha o sentido que a palavra tomou posteriormente. Ao espalhar-se pela Europa e depois pela América e outros continentes tomou um sentido ligado à política. Na «Gíria Quadrazenha» pedreiro tomou o nome de arguina.
Como os pedreiros, outras profissões inventaram gírias adaptadas às suas artes, protegendo o conhecimento dessas artes: alfaiates, tecelões, músicos, caldeireiros, etc. Diz-se que a «Gíria Quadrazenha» era linguagem de contrabandistas. Mas o contrabando só surgiu no século XIX quando foi criada a Guarda-Fiscal em 1885. Foi mais conhecida a partir daí. Creio que a «Gíria» é muito mais antiga e o quadrazenho usava-a para proteger os seus negócios de almocreve ou ambulante e mesmo em outras actividades. Cambalache, palavra que significa negócio, troca, é significativa disso mesmo. Sobe e desce (fio de prumo) nada tem a ver com contrabando ou ambulância, tal como cascosa do ar (castanha), cascosa ou pátua ou tarroina (batata) e broco(a) (boi, vaca). Já aparecem dois almocreves entre 1685 e 1718 nos Registos Paroquiais de Quadrazais. Entre 1855 e 1899 são registados 381 almocreves e 15 ambulantes. Entre 1900 e 1939 há registos de 56 ambulantes e 14 almocreves. A designação de almocreve desaparece após 1939. Até 1965 os ambulantes passam a ser 70. Não se fala em contrabandistas. Estarão incluídos noutras profissões, nomeadamente em agricultores.
Directamente relacionados com o contrabando apenas temos as seguintes palavras: anaco, bleno, caiada, catroio, chulo, facho, frenho, fuganta, fugante, fusco, gesno, gerno, macalo, maleque, moca, naco, paivo, paivante, pala, parrondas, pitilho, Reta, Reta Francha, Reta Frenha, tramposa e vagarosa. E algumas destas palavras podiam ser usadas fora do contrabando. Nem sequer nos chegaram palavras que traduzissem os objectos contrabandeados: véus, colchas, artigos de mulher, etc., o que é indício de que a «Gíria» não começara para ser usada no contrabando. Apenas maleque (tabaco) e moca (café) se podem associar a artigos de possível contrabando. Palavras como alipantes, altanar-se, andante, avoanta, calcantes, carcábios, cascosas do ar, cascosas da terra, pátuas ou tarroinas (batatas), coime, drepa, galrar, gemo, gilfo, groio, macalo, Mata Granja, Mata-Líria, Mata Lodo, méria, murchoila, nadante, penosa, pério, pinante, runfo, suquir, etc. poderiam ser usadas em casa ou noutra actividade, nomeadamente na ambulância. Fardosa (fazenda) é termo que se aplica mais à ambulância que usava fardos para cobrir a fazenda do que ao contrabando, que usava carregos e não fardos. Fanóia e falhorda significam fazenda, termo mais usado na ambulância. Sendo o contrabando transportado às costas, seria normal haver um termo da «Gíria» para costas. Há muitas palavras ligadas a taberna: ardosa, beca, bequeiro, briol, chairel, chairéu, chareno, charepe, que não têm ligação directa com o contrabando. O mesmo se diz de mercho (padre) e cangra (igreja), ligadas à religião. Arguina e sobe e desce estão ligadas à actividade da construção civil.
Embora uma «Gíria» não deva ter tradução para todas as palavras de uma língua, como neste caso o Português, seria natural que tivesse palavras para designar outras partes do corpo, como barriga, boca, braços, cabelo, costas, costelas, estômago, orelhas, ombros, nariz e peito; ou membros da família como avô, avó, genro, nora, tio, tia; ou peças de roupa como casaco, ceroulas e saia; ou objectos de uso caseiro como copo, garfo, jarro, prato e tijela; apenas usaram cucharra (termo espanhol), naifa (faca) e escanar (comer) formada do Português escano; ou relacionadas com as actividades agrícolas como carro de vacas, enxada, foice, gadanha, gancho, etc.; ou designativas de profissões como alfaiates, ceifeiros, sapateiros, etc.; ou partes da casa como cozinha, quarto, sala e telhado; ou frutos e árvores como maçã, macieira e pereira. O mesmo se diz de palavras ligadas à religião. Se nos chegaram cangra (igreja), mercho (padre), por que não palavras para traduzir altar, campainha, capela, cemitério, Deus, enterro, hóstia, irmandades, missa, rezar, santos, sepultura e sinos? Estou em crer que existiam, mas não chegaram até nós. Foi minha tarefa recriá-las.
Tão poucas palavras (302) não davam para manter uma conversa e muito menos para traduzir uma obra literária, como eu fiz com «Narrada no Risco» publicada aqui no «Capeia». Por isso tive de criar 1.930 palavras em «Gíria». Mas não foi ao acaso. Segui as regras usadas pelos criadores da «Gíria», a saber:
1 – Na «Gíria» há palavras que se formaram por anagrama de palavras portuguesas: drepa (pedra). Eu também usei este método para criar algumas, como: corretâneo (conterrâneo), drento, granvir (vingar), leres (reles), lharrar (ralhar), lharro (ralho), lufo (fulo), pacaz (capaz), vrede (verde), vrido (vidro, que muitas pessoas assim pronunciavam).
2 – A partir das existentes criei outras por sufixação ou prefixação: andantada (de andante), desalumar (de alumar), drepada e drepagulho (de drepa), menunciar (de menúncio) e infixante (de fixo).
3 – O quadrazenho adaptou os verbos do Português para criar os verbos da «Gíria», acrescentando-lhes sufixos. Para os verbos da 1.ª conjugação, terminados em -ar, juntaram-lhes o sufixo -sir: chamar/chamarsir; aos verbos da 2.ª conjugação terminados em -er e aos da 3.ª conjugação, terminados em -ir, acresciam ao radical o sufixo -unhir ou -umpir: partir/partumpir, saber/sabunhir. O mesmo fiz eu com abastumpir/abastecer, abrunhir (abrir), abusarsir/abusar, aplicarsir/aplicar, baixarsir/baixar, cultivarsir/cultivar, enchunhir/encher, lavarsir/lavar, lembrarsir/lembrar, pensarsir/pensar, passarsir/passar, secarsir/secar, sentarsir-se/sentar-se, usarsir/usar, etc.
4 – Usei os prefixos de negação -in(im) ou -des para criar palavras com sentido contrário às existentes ou criadas por mim: desfazunhir, impensante.
5 – Incluí na «Gíria» palavras do Português mas com pronúncia quadrazenha: acachar (agachar), altmoble por automóvel, arreplanar (de arreplano, como pronunciam aeroplano em vez de avião), brecar (romper), breco (buraco), fequer (ficar), parder (perder), precrer (procurar), vegitar (visitar).
6 – Usei a prótese na criação de palavras para traduzir outras portuguesas com prótese: arrifar (arrematar). Do mesmo modo usei a aférese e a síncope nas palavras que traduziam termos portugueses onde esses fenómenos fonéticos existiam: çafate (açafate). Usei muito a aférese para criar novas palavras na «Gíria»: cargo, citar, cudir, cupação, lusivo, posar, precação, pressar, primir, sultar, talar, tantar, tender, tusiasmar, tusiasmo.
7 – A palavras como çarangonha (cegonha), catreno (quatro), catroa (quadra) crunhir (querunhir) e jaral (geral) tive de lhes alterar a escrita pois não seria correcto escrever sarangonha, qatreno, qatroa, qrunhir, garal, por não se usar ç no início de palavra ou após uso da síncope ou assimilação do -e a seguir a -g.
8 – Outro modo de criação de palavras em «Gíria» que o quadrazenho usou foi atribuir um nome ao objecto que traduzisse uma das suas características físicas ou agente de acção: amarelo (sol), lavante (sabão), nadante (bacalhau, peixe). O mesmo fiz eu em ferrosa (panela) e vermelho (sangue).
9 – Na «Gíria» há palavras que se formaram acrescentando o sufixo -erno à palavra portuguesa: boquerna (boca). Eu fiz o mesmo em: corperno (corpo), gacherna (vinha), genterna (gente), mesmerno (mesmo), noverno (novo), problemerno (problema) e volterna (volta).
10 – Não considerei como novo termo da «Gíria» os particípios passados verbais, salvo quando substantivados: presunhido, de presunhir=prender.
11 – Tal como em Português, também criei palavras homónimas: rodas (camioneta da carreira) e rodas (anos).
12 – A gíria usou uma ou outra palavra estrangeira: formage (queijo), moienes, soienes, árgio, méria, pério. Eu também as usei: aida (ajuda), biera (cerveja), bô-pério (sogro), chanjança (mudança), costume (fato), engaijado (noivo), menaçar (ameaçar), onclério (tio), placar (substituir) e tantéria (tia).
13 – Mantive muitos dos pronomes do Português mas com a pronúncia usada em Quadrazais: êla, éle (em certos casos), mê, tê, sê, tó (tua), só (sua), êsta, aquêla.
14 – Não traduzi para «Gíria» a maioria das preposições, advérbios, conjunções, locuções prepositivas, adverbiais ou conjuntivas. Não ousei traduzi-las, dado a natural dificuldade. Por isso não as incluí no «Dicionário da Gíria». Mas traduzi algumas: ó vento de (ao lado de, junto de), ternamente (facilmente) e adaptei algumas ao falar corrente do Português em Quadrazais: acais (quase), apoi (depois), poi (pois).
15 – Mantive muitas palavras de uso raro no Portugês mas usadas em Quadrazais: achaque, amochar (obedecer, baixar a cabeça), balhar, barranha, caçoilo, cetos, estadulho, gleba, fráugua, munho e tacoila.
16 – Não traduzi para «Gíria» os topónimos Alcambar, Fonte, Praça, Vale, Quadrazais (que pronunciam Códrazais), Sabugal, Soito. Apenas mantive os que já existiam: Mata-Líria, Mata-Granja, Lísbia, Mata Lodo.
17 – Usei como «Gíria» muitas palavras portuguesas, mas com outro sentido: tempo (vez), acabar (matar), tapar (remendar, reparar), covas (cemitério).
18 – Não traduzi os diminutivos nem os masculinos/femininos, salvo se tiverem significados diferentes.
19 – Tal como em Português, um termo pode ter vários significados na «Gíria». Daí que a um número de termos portugueses não tenha de corresponder o mesmo número na «Gíria». Por isso, apresento 2.232 termos em «Gíria» e 2.438 em Português.
20 – No fim de cada letra assinalo o número de termos começados por essa letra já existentes e os criados por mim. São precedidos de asterisco os termos que criei (1930).
(continua)
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«Novo Dicionário da Gíria Quadrazenha», estudo de Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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