A celebração do Ano Novo constitui na vida de todos nós um momento especial para vivermos o sentimento de estarmos vivos e de alimentarmos novas esperanças no nosso futuro individual e coletivo. Mas isso não nos coibe de fazer um balanço sobre o nosso passado recente e sobre aquilo que nos cabe fazer doravante para melhorarmos as nossas vidas mas também para contribuirmos para um futuro melhor dos nossos concidadãos. (parte 1 de 3.)
Situação política no primeiro trimestre de 2024
Efetivamente, como a nossa memória do passado é curta, vale a pena aproveitar a efeméride do Ano Novo para dedicar algum do nosso tempo para fazer um balanço sucinto sobre a situação política, económica e social em que se encontrava Portugal no primeiro trimestre de 2024, i.e. no período que antecedeu as eleições legislativas do passado dia 10 de março.
Depois da maioria absoluta conquistada pelo Partido Socialista nas eleições legislativas de janeiro de 2022, que lhe deveria ter servido para instaurar no país uma governação estável e com capacidade reformista e transformadora, a esperança de que tal viesse a acontecer cedo deu lugar à desilusão. De facto, contrariamente às expectativas de muitos eleitores que tinham votado no partido liderado por António Costa nessas eleições, a gestão política do mandato que, nessa data, lhe tinha sido conferido nas urnas, acabou infelizmente, por traduzir-se num clima de crise política.
De facto, a onda de casos, de trapalhadas e de demissões de vários membros do Governo Socialista ocorrida em 2022 e 2023, por um lado, e, por outro, o simultâneo mau funcionamento dos principais serviços públicos do país (Hospitais e Unidades Locais de Saúde do SNS, Escolas, Tribunais, Prisões, Forças de Segurança, Políticas públicas de Habitação) bem como a situação económica e social de cerca de dois milhões de portugueses que viviam abaixo do limiar da pobreza, vieram pôr a nu a instabilidade, a descoordenação, a ineficácia e a falta de rumo de que deu provas esse terceiro Governo de António Costa, deixando a sua credibilidade fortemente abalada junto da opinião pública, como o revelaram claramente os baixos índices de confiança nesse Governo revelados pelas sondagens de opinião levadas a efeito durante o ano de 2023.
Entretanto, na sequência lógica dos aludidos casos e ineficiências em que esse governo se foi gradualmente enredando e perdendo confiabilidade desde a sua tomada de posse, acabou por rebentar subitamente nas mãos do ex-Primeiro-Ministro António Costa uma espécie de «bomba-relógio». No seguimento de um comunicado da Procuradoria Geral da República (PGR) difundido a 7 de novembro de 2023, o País ficou a saber que, no âmbito de um processo de investigação criminal («Operação Influencer»), tinha sido instaurado contra António Costa um inquérito de investigação no Supremo Tribunal de Justiça que, aliás, continua a correr os seus termos até à presente data. Nesse comunicado da PGR dizia-se, entre outras coisas, que no aludido inquérito de investigação existiam elementos factuais que faziam referência à pessoa do então Primeiro-Ministro e que eram «suscetíveis de constituir eventuais crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva e de tráfico de influências».
A reação de António Costa é bem conhecida de todos. Quando na manhã desse dia 7 de novembro tomou conhecimento desse comunicado da PGR, o então Primeiro-Ministro correu sem demora ao palácio de Belém a apresentar o seu pedido de demissão ao Presidente da República. Por seu turno, o Chefe do Estado aceitou esse pedido, decidiu dissolver a Assembleia da República e convocou o País para novas eleições legislativas a realizar no dia 10 de março de 2024.
As eleições legislativas de 10 de março de 2024
Assim que os resultados destas eleições legislativas foram divulgados, só os mais distraídos não se deram conta de que este ato eleitoral de 10 de março marcou o fim da bipolarização entre os dois partidos do chamado «arco da governação» – PS e PSD – e que ele inaugurou no país uma nova etapa do sistema político-partidário: a chamada «tripolarização».
Mais… Depressa se percebeu que esta tripolarização veio para ficar. Aliás, ela introduziu no país um novo quadro político-partidário semelhante àquele que já existe noutros paises europeus, como é designadamente o caso da França.
De facto, o mais de um milhão de votos conquistado pelo partido Chega nessas eleições legislativas constitui um dado incontornável que veio criar uma nova dinâmica interna na situação política portuguesa e que assinala o surgimento de uma terceira força política capaz de competir com o PSD e o PS pela conquista do poder em Portugal… a «direita radical».
Por outro lado, as eleições de 10 de março também tornaram evidente que, com o apagamento gradual do peso político dos partidos da extrema esquerda, que em 2022 e 2023 já se estava a verificar na cena política nacional, estes partidos tenderão, mais tarde ou mais cedo, a ser gradualmente absorvidos pelo partido hegemónico da esquerda… o Partido Socialista.
Dito isto, a experiência dos últimos oito meses de 2024 apenas veio mostrar à evidência que a vida política portuguesa passou a caracterizar-se por uma luta sem quartel entre três grandes blocos partidários:
1) o bloco de todas as esquerdas liderado pelo PS;
2) o bloco do centro-direita liderado pelo PSD (com o apoio do CDS e, pontualmente, da Iniciativa Liberal);
3) o bloco da direita radical dirigido pelo partido Chega.
A atuação dos Blocos da Oposição em 2024
Na verdade, ultrapassados que foram os primeiros testes à sobrevivência política do Governo AD (coligação vencedora das eleições de 10 de março que iniciou funções a 2 de Abril de 2024 ) ou seja:
1) a aprovação do Programa do Governo AD para a presente legislatura na Assembleia da República; e,
2) a aprovação do Orçamento de 2025 que esteve em dúvida até à véspera, em razão dos constantes e inenarráveis avanços e recuos da liderança do PS em aceitar viabilizá-lo e que ficaram conhecidos como «A Novela do Orçamento». A experiência veio mostrar que tem sido no quadro da tripolarização atrás descrita que a gestão política do país se tem vindo a exercer até ao presente. Por outro lado, esta experiência permite antecipar que será neste novo enquadramento político-partidário que essa tripolarização continuará a ser gerida nos tempos mais próximos.
Deste modo, e tal como já se previa, a tarefa do Governo da AD não tem sido nada fácil. Efetivamente, não dispondo de maioria absoluta no Parlamento mas tão só de uma maioria tangencial, este Governo tem sido obrigado a negociar no Parlamento, caso a caso, com os dois blocos da oposição, à esquerda e à direita da AD (PS+Chega) a viabilização das medidas previstas no seu Programa de Governo.
Pior… A realidade tem mostrado que os dois referidos blocos da oposição têm, apesar das ideologias diametralmente opostas que os separam, continuado estranhamente alinhados na aprovação de um significativo número de medidas legislativas que um e outro apresentaram na Assembleia da República e têm, por outro lado, chumbado conjuntamente algumas das principais iniciativas legislativas propostas no Parlamento pelo atual Governo.
Dito de outro modo, esses dois blocos têm-se empenhado, acima de tudo, em conseguir, a todo o custo, uma desforra política relativamente aos resultados minoritários por eles alcançados nas eleições legislativas de 10 de março de 2024.
De facto, tem-se assistido, com alguma surpresa, diga-se, à instauração de uma espécie de «Governação Parlamentar do País» imposta conjuntamente pelos dois referidos blocos da oposição (PS+Chega) na Assembleia da República, que não apenas tem dificultado o exercício normal da execução do Programa do Governo AD aprovado pelo Parlamento, como, além disso, tem contribuido através da tomada de sucessivas medidas de pendor claramente eleitoralista para o agravamento exponencial das despesas do Estado, as quais, no dizer do insuspeito Presidente do Banco de Portugal, Mário Centeno, se arriscam a pôr em causa o equilíbrio das Contas do Estado em 2025, bem como nos anos seguintes.
Ou seja, abriu-se em Portugal um novo ciclo político no qual a margem de manobra do Governo em funções se encontra fortemente condicionada pelos dois blocos da oposição atrás referidos que, juntos, dispõem de dois terços dos votos na Assembleia da República, ou seja, de uma maioria absoluta.
Os principais cavalos de batalha da Oposição ao Governo
A morte de um cidadão de etnia africana – Odair Moniz – causada em circunstâncias ainda não inteiramente esclarecidas por um disparo de um agente da PSP no decorrer de uma perseguição policial levada a cabo, a 21 de outubro de 2024, num bairro da Amadora transformou subitamente a região suburbana de Lisboa no palco de uma longa série de tumultos e de desacatos de vária ordem, incluindo, noite após noite, incêndios de automóveis, de caixotes de lixo e até de autocarros, um dos quais foi barbaramente atacado e incendiado deixando às portas da morte o seu condutor. Estes acontecimentos lamentáveis desencadearam, como era de esperar, alguns dias mais tarde, duas manifestações nas ruas da capital promovidas por dois movimentos políticos diametralmente opostos. De um lado, cidadãos e líderes partidários conotados com o PS e a esquerda radical sairam à rua em protesto contra a «violência policial». Do outro, o partido Chega da direita radical não lhe ficou atrás e organizou na mesma data uma manifestação de «apoio às Forças de Segurança».
Estes episódios acabaram por servir de rastilho a uma campanha política contra o Governo logo promovida pelas figuras de proa do bloco político de todas as esquerdas liderado por Pedro Nuno Santos e pelo bloco político da direita radical liderado por André Ventura. O primeiro acusando o Governo de ser extremista, de ser anti-imigração e mesmo de xenofobia, e o segundo aproveitando esta oportunidade de ouro que acabava de lhe cair nas mãos para endeusar as Polícias e para reclamar, alto e bom som, a necessidade de se implementar com urgência em Portugal um Sistema de Segurança à prova de bala.
Entretanto, perante o crescendo da tensão política e do impacto amplificador que esta campanha anti-Governo foi ganhando, dias a fio e de manhã à noite, nas redes sociais e nos jornais e canais de televisão (estes últimos sobretudo preocupados em alimentar um ambiente de polémica permanente para não perder audiências e para assegurar, desta forma, a sua sobrevivência económica), o Primeiro-Ministro, achou por bem dirigir, alguns dias mais tarde, uma «Comunicação ao País», na qual surgiu acompanhado das ministras da Justiça e da Administração Interna e dos comandos das Forças de Segurança, para, em suma, explicar as medidas de segurança tomadas pelo Governo desde a sua tomada de posse e declarar que, apesar de Portugal ser um país seguro, as medidas da Segurança Pública constituem um instrumento prioritário da Governação do País que importa reforçar para combater eficazmente a criminalidade. Agindo desta forma, Luís Montenegro não apenas praticou um erro grosseiro de comunicação perante o país, como sobretudo um erro de estratégia política ao deixar-se cair na armadilha que lhe foi montada pelos dois blocos da oposição.
De facto, a rusga que a PSP decidiu levar a cabo a 21 de dezembro de 2024, na Rua do Benformoso, na zona do Martim Moniz acabou por contribuir para amplificar esta armadilha política dos blocos da oposição. Esta operação policial da PSP terminou com dois detidos – um procurado por oito roubos violentos e outro apanhado com uma arma proibida – bem como com a apreensão de sete bastões de ferro e madeira, mais de meio quilo de haxixe, 17 envelopes com fotos tipo passe, um passaporte e outros documentos associados à imigração ilegal, uma arma branca, um telemóvel roubado e 4.000 euros provenientes de atividades ilícitas.
Como era previsível, esta rusga da PSP (a quarta operação semelhante efetuada em 2024 pela PSP nessa zona de Lisboa) deu imediatamente lugar a uma nova campanha desencadeada pelos dois blocos partidários da oposição ao Governo alegadamente devido à forma como dezenas de agentes bloquearam as ruas e encostaram centenas de imigrantes à parede para serem revistados.
«Um Governo que mobiliza politicamente forças de segurança para atacar indiscriminadamente um alvo como a população migrante é um Governo perigoso», acusou a líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua.
«A operação policial que decorreu no Martim Moniz não tem nada que ver com segurança, mas sim com percepções», afirmou, por sua vez, o líder do PS. «Sinto-me triste, envergonhado enquanto político e revoltado com o Governo do nosso país, mas também com a Direção Nacional da PSP. Temos neste momento em Portugal o Governo mais extremista nas últimas décadas da nossa democracia.» E Pedro Nuno Santos concluiu com um alarme lançado à navegação: «Se uma cultura repressiva e intimidatória se instala em Portugal, hoje são os imigrantes, amanhã são os portugueses todos.»
Por sua vez, o presidente do Chega considerou que este tipo de operações policiais deveriam «realizar-se mais vezes» e defendeu que a polícia tem de «mostrar autoridade». «Não só concordamos com estas ações como achamos que elas deviam ir mais longe e realizar-se mais vezes para mostrar a portugueses e estrangeiros que Portugal está seguro e que não tem medo nem há zonas do seu território onde a polícia não entra», afirmou André Ventura.
Ou seja, os temas da Imigração e da atuação das Forças de Segurança transformaram-se nos «cavalos de batalha» utilizados tanto pelo bloco de todos os partidos da esquerda, como pelo bloco da direita radical para, desta forma, ir ganhando votos com vista às próximas eleições autárquicas e para criar as condições indispensáveis ao desgaste progressivo do Governo que lhes permita afastá-lo, quanto antes, do poder.
Dito isto, vale a pena observar que, ainda assim, esta campanha política dos dois blocos da oposição atrás referidos não tem colhido um significativo apoio na chamada sociedade civil, como aliás se pode inferir das declarações de conhecidas personalidades ligadas tanto ao comentário político, assim como à mais alta hierarquia da Igreja Católica, ou mesmo à própria Academia. Por outro lado, esta campanha política, sobretudo a que foi levada a cabo pelo bloco dos partidos da esquerda não encontrou suficiente esteio nas sondagens e nos estudos de opinião mais recentes (veja-se, a título de exemplo, o «Barómetro da Imigração» publicado em dezembro de 2024 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que auscultou 1.072 cidadãos portugueses, ou seja, uma amostra representativa dos residentes em Portugal Continental. Além disso, esta campanha política foi frontalmente refutada quer pelo Governo, quer pelos comandos das Forças de Segurança, quer mesmo por destacadas figuras de vários partidos políticos, incluindo o próprio Partido Socialista.
(continua)
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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