O Padre Jardim Gonçalves faleceu no domingo passado, dia 22 de Dezembro. Tinha falado com ele dois dias antes para lhe desejar um Feliz Natal e, ao ouvir a sua voz, não me pareceu que estivesse em fim de vida. Mas com a idade canónica de quase 93 anos, um nada pode ser o suficiente!
Eu tinha sempre uma excelente relação com este grande senhor que não o deixaram ser bispo, mas recusou o cargo honorífico tão invejoso de Monsenhor que lhe tinha sido oferecido pelo Cardeal José Policarpo.
Era o único padre que tratava por tu. Foram décadas de amizade. Cada vez que lhe telefonava ou que o visitava na Casa Sacerdotal, em Lisboa, onde, por razões de saúde vivia há cinco anos, pensava que poderia ser a última que nos encontraríamos. Por isso, não resistia em fazer uma selfie, por vezes com a minha mulher ou com os meus netos a quem contou o episódio do acidente de avião em São Paulo, em 1 de Novembro de 1961, em que o avião se partiu ao meio, tendo o Padre Jardim ficado na parte de trás, em cima das árvores, mas os que ficaram na parte da frente morreram todos queimados.
Conseguíamos ter sempre uma conversa fora dos lugares beatérios ou dos cânones eclesiásticos. Era um homem culto, um leitor assíduo e de um humor por vezes desconcertante.
Nos últimos anos, encontrava-o a selecionar o seu espólio documental e a catalogar os apontamentos das suas numerosas actividades nacionais e internacionais que, certamente, poderão interessar estudiosos em história dos movimentos operários e sociais. Entretanto, a sua biblioteca de mais de oito mil volumes foi oferecida ao Município de Machico, na ilha da Madeira.
Machico tinha sido a primeira paróquia que o Bispo do Funchal lhe tinha confiado, após a ordenação sacerdotal, em 1956. Ali descobriu o que era a miséria e a dignidade dos trabalhadores que marcaram para sempre a sua vida e sua missão humano-sacerdotal. Dizia-me que o seu coração ficava desfeito ao ver os homens e as mulheres deste lugar, apresentarem-se na missa descalços, por vezes, todos molhados da chuva e com cara de fome. Por isso, a Machico fez a dádiva do enorme espólio da biblioteca que possuía no seu apartamento, na Avenida Grão Vasco, em Benfica. De vez em quando lá acrescentava mais uma remessa de livros que comprava ou lhe ofereciam. Dizia-me que também lá estavam os meus.
No fim dos anos sessenta acompanhou o entusiasmo de um grupo de jovens que se motivaram pela renovação da igreja em pleno operariado de Setúbal e que constituíram a primeira equipa de padres operários e leigos em Portugal, e que Carlos Azevedo menciona na sua «História da Igreja em Portugal». Fazendo também eu parte desse núcleo, tive a oportunidade de ali o encontrar pela primeira vez.
Voltámos a cruzar-nos no ISET-Instituto Superior de Estudos teológicos, em Lisboa, onde foi meu professor e com quem aprofundei a temática da Teologia da Libertação, de Gustavo Gutierrez, acompanhando também as preocupações da CELAM (Conferência Episcopal Latino Americana), reunida em Medelin, Colômbia, em 1968. Por vezes, íamos a pé, depois das aulas, do Largo da Luz até Benfica, e eu, até à Brandoa, onde habitava. Não havia paredes para nos ouvirem e nas então veredas descampadas, entre a Pontinha e Alfornelos, onde mais tarde assumiria as funções de Pároco, murmurávamos o nosso descontentamento perante uma igreja atada a um Estado retrógrado e ditatorial. Nesse tempo, os horizontes de um jovem, exigente como eu, reduziam-se.
Continuámos a conviver no CCO, Centro de Cultura Operária, em Lisboa, onde trabalhava a meio tempo. Jovem que era, nem talvez me tivesse apercebido do grande valor das pessoas que ali trabalhavam, como a Maria Elisa Salreta e o Fernando Abreu que estavam a lançar as bases de um sindicalismo autogestionário, inspirados naquilo que se passava em França e na Bélgica, sem porem de lado o método jocista do ver, julgar e agir que tinha sido implementado pelo seu fundador Joseph Cardijn.
O Pe. Jardim ainda me entusiasmou pelo estudo dos movimentos operários, e tive oportunidade de me encontrar com o dr. Narciso Rodrigues, no Porto, bom conhecedor desta problemática, em Portugal, assim como me proporcionou um breve estádio na CFDT, em Paris, sobre a animação de grupos, bem necessário para a promoção dos trabalhadores, mas o alarme do serviço militar tinha tocado.
Nos meandros das minhas hesitações entre sacerdócio, tropa e exílio, mais uma vez o Padre Jardim foi de um apoio inolvidável. Abriu a agenda dos seus contactos e aventurei-me numa madrugada radiosa, transpondo a fronteira para ir residir a dois mil quilómetros de Portugal, onde vim a encontrar alguns dos seus amigos, antigos jocistas, como a Vitória Pinheiro e o José Dias Rodrigues, dirigentes nacionais e antifacistas que actuavam desde a cidade de Bruxelas.
Algum tempo após o meu exílio, tive ainda o privilégio de o ter como assistente do meu casamento na nova terra onde comecei a viver uma vida de estudo, de trabalho e de liberdade.
Era por Bruxelas que o Pe. Jardim Gonçalves passava nas suas numerosas viagens pelos quatro cantos do mundo, como assistente do MMTC (Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos). A sua passagem por esta cidade era uma ocasião para um animado convívio entre amigos como o Manel Jorge, o Vítor de Ascensão Maria, o João Gabriel Correia e outros que, longe de Portugal, recebiam notícias sobre o nosso país, de uma pessoa sempre muito bem informado, não fosse ele também jornalista.
Outros tempos surgiram após o 25 de Abril e os compromissos do Pe. Jardim afirmaram-se em numerosos ramos e actividades, quer em Portugal, quer no estrangeiro. O meu contacto continuou com este homem lúcido, ternurento, cheio de humor e visionário antes do tempo.
Ele fez parte da minha vida. Por isso, quis aqui prestar-lhe a minha gratidão e homenagem.
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«Pedaços de Fronteira», opinião de Joaquim Tenreira Martins
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Novembro de 2012)
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