Os tempos natalícios que se vivem são incomparáveis a duas faces da mesma moeda. Numa, há gastos exagerados, muitas luzes, iluminações, música, muita música, divertimentos nas ruas e praças das cidades, vilas e em algumas aldeias. Muita alegria, convívios, saudações…
A comunicação social dá conhecimento de que sete grandes autarquias gastaram em festejos de Natal, vejam só, três milhões de euros. Se juntarmos as outras centenas, a quantos milhões se chegam?
Números para uma reflexão num País com mais de dois milhões de pobres, milhares de imigrantes sem condições dignas de viver, milhares de sem abrigo (mais de treze mil), milhares de jovens no desemprego, falta de justiça, de educação, de habitação…
Do outro lado da moeda, está, pois, a pobreza, a solidão (o distrito da Guarda é onde vivem mais idosos isolados), as desigualdades e exclusões sociais.
O acontecimento que vou relatar aconteceu nesta quadra do Natal. Numa dessas cidades, que gastou muitos milhares de euros em iluminações, há uma rua cheia de música e luzes.
Num andar antigo, a precisar de obras de restauro e conservação, vivia uma idosa mãe acamada, com noventa e dois anos, ajudada a sobreviver pelo seu filho de sessenta e três, reformado, que partilha a residência.
Passou muitos anos no mar como pescador, em tempos idos. Esta difícil profissão deu-lhe endurance para encarar as dificuldades de cuidador da sua mãe.
Saía para fazer umas compras no supermercado mais próximo da residência, ia de vez em quando tomar um café, e passava horas à janela a fumar e a ver as pessoas passar, muitas delas com o passo apressado.
De vez em quando cruzava-se com os vizinhos e conversava ligeiramente. As consciências destes estavam sossegadas.
Vivia num andar antigo, com a renda de acordo com aqueles tempos, que pagava a tempo e horas, sem nunca se esquecer.
Ocupava-se da mãe acamada, ia fazer as compras necessárias para a mútua sobrevivência, tomava o seu café, passava o tempo à janela fumando… Era visto diariamente pelos seus vizinhos, até que há semanas os estes o deixaram de o ver, mas seguiram despreocupados pela ausência, como acontece e é habitual em muitos condóminos.
Os velhos estores das janelas que diariamente abria para fumar um cigarrito, há muito que estavam fechados. Há muito que não frequentava o café, que não se via com as compras, que não falava com os seus vizinhos sobre as aventuras dos tempos de embarcadiço.
Passaram-se semanas, mas ninguém o procurou, ninguém quis saber as motivações desta estranha ausência.
O inquilino tão pontual no pagamento da renda, o senhorio estranhou o atraso e dirigiu-se ao andar para a respectiva cobrança. Tocou a campainha, bateu à porta, chamou, chamou, e daquele andar, além da recepção de um silêncio profundo, intenso, sepulcral, estranhou o cheiro que daquele local exalava.
A vida decorria naquele prédio normalmente, porque não chegou aos narizes dos seus residentes o cheiro de dois cadáveres humanos em decomposição.
Perante tão estranha situação, chamaram as autoridades, os bombeiros para facilitar a entrada naquele andar. Depararam com o filho já em adiantado estado de decomposição e a mãe acamada morta. Sem o apoio daquele, morreu de fome e de sede, de falta de cuidados primários.
Recolhidos aqueles corpos, seguiram para o Instituto de Medicina Legal e, feitas as perícias, as autópsias, concluiu-se que o filho faleceu por problemas cardíacos e a mãe, por falta do seu apoio, morreu de fome e de sede.
As autoridades da segurança social informaram que este caso não estava referenciado. Numa cosmopolita cidade, dentro dum prédio, num andar junto a luzes piscantes, das prateleiras cheias, de ceias extravagantes, das iguarias, dos presentes sem propósito, estava um uma mãe acamada e um filho esquecidos de todos…
Sinais dos tempos…
Escreveu D. Manuel Martins, primeiro Bispo de Setúbal: «E sem Natal, sem os grandes valores do Natal, o mundo continuará cheio de muros, o mundo não passará de uma prisão, mesmo que dourada, para uns quantos.»
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Nota
Esta crónica é a última do ano de 2024. Assim, desejo à direcção, aos colaboradores, aos Leitores do Capeia Arraiana do Sabugal, um Bom e Feliz Ano de 2025, com saúde, solidariedade, paz e… muitas leituras.
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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2012)
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