Gente em fatos de treinos cada vez mais se enxergava – e era um dos sinais de Portugal a mudar, no culto acrescer do corpo, no desejo e na tentação desses corpos a exibirem-se enxutos, torneados e bronzeados… (2).
Nas praias, de biquínis a minguarem, vulgarizava-se o topless
(ou o nudismo em ousadias maiores e menores pudores…) de tal forma que, no verão seguinte,
haveria de ver-se Mário Soares (ele de calções e tronco nu) e Maria Barroso (ela ainda em fato de banho de peça única)
numa natural cavaqueira nas areias do Vau, com uma morena de seios ao léu
(e fio dental a desnudarem-lhe as coxas)
Nas praias, de biquínis a minguarem, vulgarizava-se o topless (ou o nudismo em ousadias maiores e menores pudores…) de tal forma que, no verão seguinte, haveria de ver-se Mário Soares (ele de calções e tronco nu) e Maria Barroso (ela ainda em fato de banho de peça única) numa natural cavaqueira nas areias do Vau, com uma morena de seios ao léu (e fio dental a desnudarem-lhe as coxas) que o «Tal & Qual» enviara ao Algarve para lhe apanhar assim a fotografia que incendiaria a sua primeira página (e ela era a modelo Lola Conchita).
Semanas antes, organizara-se em Vagos, o Dia do Agricultor – e, tendo amizade com Carlos Lopes, João Pandeirada convidou-o para lá. Repetiu-se o frenesim que não cessava de ver-se de lés a lés – e para o resguardarem dos fervores que não paravam, tiveram de o levar para dentro de uma ambulância, com ele a brincar com a circunstância: «Uff, cansei-me mais hoje aqui a dar autógrafos, do que quando ganhei a maratona olímpica em Los Angeles.»
Por entre a banda e o rancho folclórico, chamaram-no ao palco – e Pandeirada anunciou-o: «Em terra de gente do campo, em terra que é familiar aos animais, não seria descabido a oferta que lhe vamos fazer, pois também Carlos Lopes saiu de gente humilde, do povo, e conseguiu guindar-se ao mais alto pódio do atletismo mundial» – e a oferta foi de um vitelo que recebeu com a tradicional soga presa às hastes:
— Não sendo prémio de corrida, foi, ainda assim, talvez o mais insólito prémio que recebi. E, claro, fiquei com o vitelo, não poderia deixar de ficar. Aliás, ainda houve quem alvitrasse que se leiloasse o vitelo, levando eu o dinheiro com que o arrematassem, mas a Teresa disse logo que não, que o vitelo era para ficar connosco. Não podendo, naturalmente, vir para Lisboa, foi para casa de um cunhado meu, na zona de Tábua…
Líder do CDS estava Francisco Lucas Pires (que Mário Soares, ainda com o PS coligado com o PSD no Bloco Central, tratava, com pingo de ironia e ternura, como… «anarquista de direita»). Ao terminar, em 1966, o curso de Direito, fora indicado pela Académica para a vice-presidência do Conselho Jurisdicional da Associação de Futebol de Coimbra. Falhando, em 1981 a eleição para presidente da Assembleia Geral do Benfica (quando Fernando Martins tomou o lugar a José Ferreira Queimado) – Lucas Pires sucedera a Diogo Freitas do Amaral dois anos depois, fazendo de Carlos Móia seu secretário-geral – e Carlos Móia haveria de contá-lo: «Para combatermos o stress da política, também nós entrámos ambos na moda do jogging – e, quando, em 1985, foi Adriano Moreira para a presidência do CDS, eu deixei a política e o Francisco deixou as corridas.»
Na véspera de Carlos Lopes se lançar à Maratona de Roterdão, Amália cantou Camões (e não só) no Coliseu (onde em 44 anos de carreira nunca fizera recital) – atirando para fora de si o seu lado lunar, a sua estranha forma de vida (ou talvez não): «Sou triste, de uma tristeza que não há maior, mas, ao mesmo tempo, sou de uma alegria enorme: basta uma coisa pequenina e eu fico logo contente. Basta ir para o campo e ver um malmequer no chão para ficar logo aos pulos de alegria. Fico muito contente quando me apanho num campo de flores, não sei o que hei de fazer, dá vontade de poder andar a correr livremente por uma estrada sem trânsito, dá-me vontade de ir pela estrada fora a correr, a dançar, a cantar. Nessas alturas sou perfeitamente uma criança. Mas, depois, sou toda negra.»
E foi nesse dia, no dia em que o ABC tinha em reposição «O Pecado Mora ao Lado» (com a cena icónica do vestido branco de Marilyn Monroe a levantar-se, insinuante dos joelhos, através do vento a sair do respiradouro de uma estação do metro de Nova Iorque), que dois garotos assaltaram agência de viagens na Praça de Londres, o mais velho tinha 14 anos e, avançando de tesoura em riste para a empregada, o mais novo (que tinha 11) apoderou-se dos 20 contos em caixa, fugindo, ambos, depois, em «louca correria, sem que alguém os pudesse apanhar». Quem viu, brincou: «Até pareciam o Lopes, mas muito, muito mais novinhos, caramba.»
— Desistindo por estratégia na edição anterior da maratona para não colocar em risco os Jogos Olímpicos, logo me comprometi a voltar a Roterdão. Voltei e, mal aterrei, vieram perguntar-me se não me importava mesmo de correr com o dorsal 1. Fora, certamente, o Jos Hermens, que, de mim sabia, desses pormenores quase todos, que lhes contou que eu não gostava nada do número 1, que até parecia ter alergia ao 1. Por isso, o Hermens disse-lhes que me dessem outro número qualquer. Por mim, repeti-lhes a minha ideia: que número 1 só queria ser no final da corrida, não antes ou durante. Deram-me o 2 e do 2 eu gostava mais, muito mais. Não, não tinha nada a ver com superstição, que eu nunca fui disso, para mim não era o dorsal que corria, eram as penas – mas curioso não deixavam de ser os números que eu tinha nos dorsais com que acabara de ganhar os Jogos Olímpicos e o Campeonato do Mundo. Em Los Angeles o 723, no Jamor o 372. Ou seja: em ambos os casos, para além do 2, o 3 e o 7. Para o ataque ao recorde mundial do Steve Jones, com o 2 no dorsal, destinaram-me duas lebres – e elas nem sequer funcionaram nada bem, o Vicent Rousseau não chegou sequer aos 20 quilómetros, o Luc Waegeman tinha parado aos 16. Por isso, a meio da prova, já sozinho, ainda estive na dúvida: se havia de continuar naquele andamento ou se havia de esperar por quem vinha bem atrás. Só que, de um instante para o outro, passou-me uma coisa mazinha pela cabeça e… pensei: «Pois, há de ser o que Deus quiser» – e desatei a andar mais, a andar cada vez mais. Não tenho dúvidas nenhumas de que, nesse dia, tivesse tido um bocadinho mais de ajuda, teria sido o primeiro homem a baixar das 2.07, se calhar até teria ficado ali em redor das 2.06. É que foi mais do que meia-maratona sozinho, com partes do percurso a levar com um vento raivoso. Foi aí que, para evitar o vento de frente, para o quebrar, se puseram carros de um lado e do outro, camiões à frente, sei lá que mais para me proteger o melhor que se pudesse…
«Alguém levantou o cheque do bónus do recorde do Mundo e… não fui eu!»
Com Carlos Lopes em Roterdão, nove contos pagou quem foi ao Estoril assistir ao nascer de um Deus à chuva, num Lotus: o Ayrton Senna. Deixou Alain Prost a mais de um minuto – e, na consagração daquela que foi a sua primeira vitória na F1 (e uma das que lhe deram maior história e mais lenda…), confessou-o:
«Lembro-me da minha primeira corrida de kart à chuva. Foi um desastre, uma piada total. Não conseguia fazer nada, com toda a gente a passar-me por todo o lado. Era estranho porque no seco eu era muito bom. Nesse dia vi que não sabia nada do que era pilotar à chuva e comecei a treinar em piso molhado. Sempre que chovia, lá estava eu a testar e a treinar. Foi assim que aprendi a andar na chuva, por isso, isto aqui não foi sorte, foi trabalho, gente!»
Continuando o Totoloto a «dar milhões», nessa semana três foram os totalistas, cabendo a cada um 11 700 contos, «milionários» ainda fazia o Totobola: cada um dos onze apostadores com 13 colheram 1987 contos.
— A malta dos jornais passara a viver obcecada com aquilo que eu ganhava, tanta insistência, sobretudo na televisão, às vezes irritava-me. Aliás, não eram só os jornais, era a televisão também. Todas as vezes que lá ia, era para me chatearem com a questão dos dinheiros – e, uma vez, ao ser entrevistado perguntei: «Eu troco o meu ordenado pelo seu. Quer?» A senhora jornalista ficou muito aflita, eu atirei-lhe: «Então deixemo-nos de coisas» – e não se falou mesmo mais disso. Se me chateava, também me divertia, divertia-me ao ver os jornalistas a atirarem palpites sobre os cachets, sem nunca acertarem. Dessa vez de Roterdão até houve um holandês que pôs o palpite do cachet nos 25 mil contos, o que, por essa altura, andaria por mais de 150 mil dólares. Mentira, claro. Ou melhor: que bom seria se fosse verdade. Mais comedida foi outra balela que correu pelos jornais: que o prémio de presença tinha sido de 11 mil contos – e não, também não foi, 11 mil contos é bem provável que tenha sido o que recebi do cachet e do prémio pelo primeiro lugar. Isto nunca ninguém soube, só agora o vou revelar: teria sido mais de 11 mil contos se eu tivesse recebido o bónus destinado ao recorde do mundo, do recorde do mundo nada recebi e, algum tempo depois, fiquei a saber que esses 50 mil dólares foram levantados. Por mim, não foram. Alguém o fez, quem não sei não sei – nem me importou, foi coisa que me passou ao lado…
Ao câmbio de então, 50 mil dólares eram 8407 contos (que, segundo o conversor da Pordata, equivaleriam, em 2024, a 191 054 euros) – e, mal cortou a meta, em Roterdão com o cronómetro parado nas 2.07,12 horas (com a primeira meia-maratona a 1.03,14 e a segunda a 1.03,48 – esse troço já todo ele em contrarrelógio). Carlos Lopes confessou-o a Carlos Miranda, enviado-especial de «A BOLA»: «O quê? Se vou dormir sossegado a pensar que, amanhã, o Steve Jones é capaz de bater este recorde?! Nem pense nisso, eu durmo sempre sossegado e, sobretudo, tenho uma ideia feita: os recordes são feitos para serem batidos. Eu não sou um fossão de recordes, tenho-os, muito bem, fico com eles, ainda bem, o que interessa é que cada vez se ande melhor. Digo-lhe, com toda a sinceridade, é coisa que não me preocupa…»
(Seria lá em Roterdão que, três anos passados, Carlos Lopes deixaria de ser recordista do Mundo – nas 2.06,50 horas do etíope Belayneh Dinsamo.)
A primeira página do «L´Équipe» do dia 21 de abril de 1985 foi toda dele, com o deslumbramento a arrastar-se pelo texto (outra vez de Alain Luzenfichter) num epítome perfeito: «Fantástico! Extraordinário! Não existem palavras suficientemente fortes para classificar a proeza de Carlos Lopes, na maratona. Em menos de três anos, tornou-se o primeiro homem a aproximar-se do irreal. Quem poderia pensar, há 20 anos ou se calhar menos, que um homem pudesse correr prova tão exigente a 20 quilómetros à hora? As últimas centenas de metros foram percorridas como num sonho, sem apresentar a menor fadiga. Pensávamos estar no quinto quilómetros, tal a frescura do Lopes – em passada ampla e suave a entrar na história dos grandes mitos.»
— Aí é que eu acho que os enganei a todos, que ninguém o topou. Se cortei a meta naquela aparência de alface fresquinha, nos últimos três quilómetros estive em grandes dificuldades, cheguei a pensar que o que interessava era apenas assegurar a vitória, que essa nunca me fugiria, o John Graham estava a quase três minutos e o Cor Lambregts a quatro – que o recorde passasse, pois, muito bem. Felizmente recompus-me e lá levei a coisa até ao fim. Mas que estive um bocadinho aflito, estive. E tinha de ser: lá veio o relambório outra vez, com o rumor de que só entre 1984 e 1985 eu já tinha ganho com as mais corridas mais de 75 mil contos. Que pena não ser, uma vez mais, verdade – e há uma coisa que é bom não esquecer: só em 1983 é que eu comecei a colher de dinheiros das corridas alguma coisa que se visse, fui quase sempre um atleta de saldos, quando deixei o Sporting, campeão olímpico, recordista olímpico, campeão do mundo, recordista do mundo, o meu subsídio mensal era de 100 contos.
(Cem contos em 1985 equivaleriam a 2273 euros em 2024.)
(continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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