O exame da 4.ª classe encerrava com pompa um ciclo de vida. No dia da prova a garotada vestia fato novo e aprendia a apertar o nó da primeira gravata.
A prerrogativa de aquisição da vestimenta obedecia a dois relevantes procedimentos: a compra do tecido na feira e a ida ao alfaiate. Ora, no cumprimento deste último requisito, quis a sorte que eu conhecesse o senhor Artur.
A recordação da remota amizade que com ele estabeleci coincide com a lembrança de uma ida a Pinhel, de mota, com meu pai. Percorri, nesse longínquo dia, os escassos quilómetros que ligam as Cheiras, minha aldeia natal, à sede do concelho. O trajeto pareceu-me longo e atribulado. A estrada era de um empedrado esconso e irregular. Apenas relaxei as costas à entrada da cidade, quando a rua se alargou na maciez de um novo piso. Pareceu-me, por isso, ter acometido o final do percurso rolando sobre seda.
Aos meus olhos de criança, a dita rua, assumia a dignidade de avenida. Era larguíssima e de paralelos lisos. Mas, acabou por se estreitar a meio da descida quando, curvando à esquerda, surgiu a alfaiataria.
Desmontei, então, da mota. Coloquei na cabeça a boina espanhola que tinha amarrotado no bolso de trás e esperei que meu pai trouxesse o embrulho acolchoado com o tecido para o fato.
Entrámos os dois. Meu pai foi-me sugerindo em voz serena:
– Vá, cumprimenta lá o senhor Artur.
Receoso, ofereci a mão direita ao senhor que a apertou com amenidade enquanto me familiarizou:
– Com que então tu és o Fernando, aluno da minha filha Edite. Ela já me falou de ti. Disse-me que és um bom rapaz. No entanto, tens que passar a dar menos erros nos ditados. – Mas, dando pelo incómodo que me infligira, logo se apressou a consertar:
– Olha rapaz, não fiques cismado. Isso costuma passar com o tempo!
O senhor Artur era, de facto, um homem de presença doce que, na ocasião, conseguiu degelar a minha timidez aldeã. Senti-me, por conseguinte, perfeitamente à vontade para fazer a minha própria análise do espaço da alfaiataria.
Confesso que senti um odor novo e tranquilo que casava bem com a solenidade do momento e com a simpatia do senhor Artur. Todo o contexto me propiciava bem-estar aumentando-me, dessa forma, a curiosidade.
Para além dos tecidos expostos, responsáveis pela especificidade do cheiro, verifiquei, sobre um balcãozinho, uma estreita barra de madeira. E logo a minha intromissão infantil me instigou:
– O que é isto? – perguntei colocando o dedo indicador a meio do que me fazia lembrar um bordão.
– É um metro – responderam-me.
Com ele, o senhor Artur procedeu à medição do pano que meu pai havia desembrulhado e, ato contínuo, sentenciou:
– O tecido é à conta.
E meu pai outorgou:
– Nem de mais nem de menos, como o sal na comida!
– Chega-te cá rapaz – continuou o senhor Artur, de fita métrica na mão.
E logo me verificou a largura das costas, o comprimento dos braços, a extensão das pernas acabando por me informar:
– As medidas estão tiradas. Voltas cá para a semana, para fazeres a prova. Com este fatinho novo e com uns pozinhos de sabedoria, até eu voltaria a fazer o exame da 4.ª classe.
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PS: Esta história não é de Natal mas se, na sua singeleza, pudesse contribuir para algum deleite neste dia, ela teria cumprido a sua missão. Sinceros desejos de Boas Festas para todos.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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