Insólita (ou talvez não…) era a história que se contava sobre Salazar. Antes da partida para Los Angeles Carlos Lopes foi recebido por Mário Soares no Palácio de São Bento… (1).
«Nos jardins do Palácio de São Bento chegaram a criar-se também coelhos, patos e perus,
galinhas eram mais de 500 e, existindo chocadeiras a petróleo para ovos,
a D. Maria vendia-os, depois, a conhecidos e hotéis»…
Insólita (ou talvez não…) era a história que se contava. Depois do atentado anarquista de que se salvara por «milagre», António Oliveira Salazar fora «obrigado» («por questões de segurança») a ir viver para o Palacete de São Bento (onde a Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus tinham montado colégio para raparigas) – e, levando, consigo, para lá, Maria de Jesus (a governanta que trouxera de Coimbra), ela espalhara, pelos seus jardins, hortas, pombais, galinheiros: «Chegaram a criar-se também coelhos, patos e perus, galinhas eram mais de 500 e, existindo chocadeiras a petróleo para ovos, a D. Maria vendia-os, depois, a conhecidos e hotéis.»
E foi por ali, pelos jardins do palacete, que, antes da Missão Olímpica partir para Los Angeles, Mário Soares fechou a sessão de votos de despedida e boa sorte que aprontara:
— No fim, deixei-me ficar para trás e já só com o senhor Primeiro-Ministro perguntei-lhe, naquele meu jeito meio a brincar, meio a sério: «Oh, doutor, se eu ganhar uma medalha nos Jogos Olímpicos que tal eu ter direito a um churrasquinho de cabrito aqui neste nosso quintal?!» Riu-se, afirmou-me: «Você, realmente, tem uma lata do caneco! Olhe que servia bem para a política… Mas traga lá, então, a medalha que o churrasquinho não vai ser de cabrito, vai ser com um boi!» E foi…
O churrasquinho (que foi churrascão) foi a 29 de agosto de 1984, no dia em que presos do «Caso FP-25» anunciaram intenção de greve de fome – e a mulher de um deles o denunciou: «Da parte dos guardas, são só provocações e má educação… Alguns querem até fazer dinheiro à custa dos detidos, impedem-nos de levar, por exemplo, Nescafé, obrigando-os a recorrer à cantina da polícia, frasco que cá fora custa 300 escudos, lá dentro custa 600.»
Em julgamento continuava D. Branca, a Banqueira do Povo – e, num sinal do que também ainda era, no seu lado negro da vida, esse Portugal enfim a rejubilar com um campeão olímpico, a GNR de Viseu foi a Carregal do Sal libertar rapariga de 17 anos que vivera «sequestrada pela avó num curral» durante os últimos 10, chocando-se um dos guardas com o estado em que a encontraram: «O seu corpo raquítico parecia o de um bebé de um ano, não sabe falar, exprime-se por grunhidos, tem os membros atrofiados e movimenta-se com dificuldade a cabeça.»
Para o churrasco nos jardins do palacete, a Fundação Eugénio de Almeida mandou de Santarém um novilho de raça charolesa com 350 quilos (que estivera 24 horas no molho do tempero, constituído através de litro e meio de piripiri e cinco litros de calda de tomate, de quatro quilos de sal e dois de margarina, de um quilo de alhos e quatro de limões, 15 molhos de salsa e 10 de hortelã).
Assadores foram sete e, havendo igualmente sopa de peixe, ainda houve, no repasto, 35 quilos de enguias, paio, chouriço, queijo e azeitonas. Taças de arroz-doce foram 300 – e vindo os vinhos da Adega Cooperativa de Tomar, os refrigerantes vieram da Trinaranjus (então patrocinadora do ciclismo do Lousa, patrocinador do Sporting era a Raposeira, a Raposeira dos espumantes de Lamego).
Tudo isso foi, pois, oferecido «em nome da glória do Lopes», sem que faltassem até «cigarrilhas por deferência da Tabaqueira» para os mais de 250 convidados que o quisessem. E, na sua mesa, Mário Soares colocou, Carlos Lopes, Teresa Lopes, Fernando Mamede, Alzira Mamede, Mário Moniz Pereira e António Almeida Santos:
— A medalha de ouro levou-a a Teresa e toda aquela gente ilustre que lá estava queria tocar-lhe. O almoço só começou às duas da tarde porque o António Leitão tinha telefonado a dizer que estava atrasado, tão atrasado estava que só apareceu lá para as cinco da tarde. Antes do boi comido, fizeram-se as entregas das condecorações, dentro do palacete. A mim, o doutor Mário Soares deu-me o Colar de Honra ao Mérito Desportivo. Não sei se foi estranho ou não mas eu que, em Los Angeles, recebera a medalha de ouro com ar muito mais introvertido, ali não fui capaz de esconder uma certa emoção. Condecorações receberam também a Rosa Mota e o professor Moniz Pereira – e quando chegou a vez do Alexandre Yokochi foi um pagode: ao colocar-lhe a medalha no peito, o doutor Francisco Sousa Tavares, que era o Ministro da Qualidade de Vida, picou-o com o alfinete, o Yokochi, coitado, não conseguiu segurar o aiiiii! Chegando, enfim, o António Leitão – foi o único condecorado no jardim. A Aurora Cunha e o Ezequiel Canário não estiveram, por estarem no estrangeiro – e, tendo sido bonita a festa, no final, quando voltei a ficar só com Mário Soares, confessei-lhe: «Olhe, doutor: se se candidatar a Presidente da República, pode contar já com o meu apoio.» Não se esqueceu e fui um dos primeiros a ser convidado para a apresentação da sua candidatura no Castelo de São Jorge, sendo, depois, aliás, mais do que simples convidado, durante a sua campanha…
Formando-se em Teologia na Universidade de Coimbra, a João Lopes Soares ordenaram-no presbítero e após andar como Capelão Militar pela província, transferiram-no para Lisboa. Tornou militante republicano, chegou a ser preso pela Monarquia – e já tinha um filho de uma outra mulher quando, a 7 de dezembro de 1924 lhe nasceu o segundo. Chamou-lhe Mário Alberto, Mário Alberto Nobre Soares.
Elisa, a mãe, era dona de uma pensão no Chiado – e o filho já tinha três anos quando a Santa Sé desobrigou o pai das ordens eclesiásticas e João deixou, assim, oficialmente, de ser o que já não era: padre. Indo viver para a Rua Gomes Freire, no andar de cima havia outro Mário Alberto, o Mário Alberto Moniz Pereira.
«Eu era dois anos e meio mais velho que ele. Depressa me pus a organizar, no nosso prédio, grandes campeonatos de atletismo com os meus irmãos, os nossos vizinhos. Na varanda era o salto em altura com a corda de estender a roupa e o salto à vara com o cabo de uma vassoura velha. Saltávamos em comprimento a partir da rampa da varanda e como não dava para mais em vez do triplo havia duplo-salto. No quintal, fazíamos 30 metros à volta da nespereira e jogávamos basquetebol com uma porta a fazer de ângulo com a parede a servir de cesto. Mais tarde as provas passaram do quintal para o passeio, a sarjeta era a tábua de chamada. Também tínhamos a Volta a Portugal em bicicleta – no quarto de costura com os cromos dos ciclistas na roda da máquina de costura da minha mãe, quem conseguisse dar mais voltas ganhava. O Mário Soares, por ser mais novo, não entrava muito nos nossos torneios, mas ficava sempre a ver. Às vezes jogava ao botão, nos campeonatos do botão – e sim: várias vezes nos assustámos ao ver a PIDE entrar de rompante pelo nosso prédio, à procura do pai do Mário que amiúde se escondeu na nossa casa das rusgas da PIDE.»
(Quando, a 11 de fevereiro de 1991, Mário Moniz Pereira fez 70 anos – e 250 amigos foram a Monsanto festejá-los, um deles era Mário Soares, já presidente da República – e, nessa noite, viu-se fogacho de emoção a correr-lhe pelos olhos quando, no final do discurso, Moniz Pereira o exclamou: «Para terminar em beleza esta homenagem, vou entregar ao meu amigo Mário uma velhinha recordação da nossa infância: a caixa do jogo do botão, com as fichas de inscrição, nomes dos jogadores e cores dos respetivos botões, é a minha surpresa para ele…»)
— Quando chegou, depois, a hora da apresentação da candidatura de Soares a Presidente, por entre o magote de desportistas que lá estavam a dar-lhe apoio, voltei a brincar com ele, como naquela vez que deu no churrasco do boi, dizendo-lhe: «Doutor, não se preocupe com as sondagens, eu vou ensinar-lhe a forma do doutor conduzir a sua corrida para chegar a Belém em primeiro lugar» – e ele voltou a repetir o que dissera, antes da partida para Los Angeles: «Você, realmente, tem uma lata do caneco! Olhe que servia bem para a política.» Para mim, depois do churrasco, as festas e homenagens continuaram, continuaram por todo o lado – e espantoso para mim era que, não treinando nada ou quase nada, comendo tudo e cada vez mais, não engordei como, por vezes, engordara naqueles tempos das longas paragens por lesão, 10 quilos, vindo de Los Angeles com 53, andava, então, pelos 56. E foi antes do churrasco em São Bento que eu decidi dizer sim à Maratona de Chicago e dizer não à Maratona de Nova Iorque…
(continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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