Quem não se lembra de os pensionistas receberem da Segurança Social um vale de correio com o valor da sua merecida pensão? Durante anos parecia um relógio e naquele dia útil, muitos idosos esperavam pelo carteiro à porta.
Um belo dia Cipriano Cassolo de Sousa já fazia contas às compras que iria fazer com os seus merecidos 27 contos, depois de quase 43 anos de descontos.
O carteiro sempre aparecia na sua bicicleta Vilar com a campainha de mola numa campânula metálica.
«Bom dia Sr. Cipriano. Lamento informar, mas o vale postal como a sua pensão não veio. Aqui da aldeia chegaram todos, mas na verdade o seu não está. E olhe que fizemos a conferência três vezes. O melhor mesmo é ir à Segurança Social.»
Ficou tão irritado que a tensão arterial deve ter batido os 17mmHg. «Até o imbecil do “Joanetes” vai receber e eu nada.»
Não perdeu tempo e foi logo à Tasca do Zé Manel telefonar ao filho que tinha um amigo dos tempos de escola, o Felismino, que trabalhava nos serviços distritais da Segurança Social.
Quase duas horas depois o Zé Manel chama-o e vai apressadamente porque tinha a chamada de resposta do filho.
A notícia não foi nada boa. Existia um outro Cipriano Cassolo de Sousa nos Açores e deve ter havido um lapso. Mas descansou o Pai que o assunto se iria ser resolvido brevemente através dos serviços em Lisboa.
«Que cambada de incompetentes e ladrões», pensava o desgraçado do Cipriano que vivia sabe Deus onde e as poupanças bem escondidas nem pensar em gastar.
Em Lisboa a Inspeção-Geral da Segurança Social comprova que informaticamente estava tudo em ordem e no processo até constava a certidão de óbito do pobre coitado. Mas, entretanto, telefonam ao Felismino que, contra todos factos, confirma o estado de boa saúde do seu amigo.
Sem adiantar muita conversa o Inspetor da Segurança Social entende tratar-se de um caso de polícia e pede auxílio à Polícia Judiciária. Era a primeira vez na história da Segurança Social que tal desgraça acontecia.
O inspector da «Judite» chegou prontamente fumando cachimbo como um comboio a vapor e uma gabardine toda russa, mesmo num dia de sol. Trazia dois agentes e pediu de imediato toda a documentação para ser analisada.
«Ora se o homem está vivo temos que ver com detalhe a certidão de óbito.» Pediu uma chamada para o conservador do registo civil do distrito onde residia o Cipriano burlado.
Após breve conversa a cópia da certidão foi enviada por fax para a dita conservatória. E minutos depois o Conservador telefonicamente informou o Inspector da Judiciária que o documento só poderia ser falso. Nos registos de óbitos naquela data não existe tal fatalidade.
Passo seguinte pediu a um dos agentes para ir à Ordem dos Médicos comprovar quem seria o Doutor que assinou um documento falso. Entretanto pediu aos Serviços da Segurança Social o processo do «Cipriano Insular».
Analisou bem com o outro agente toda a papelada não detectando irregularidades. O Senhor era agricultor e recebia pouco mais que a pensão mínima.
A centralização do processamento das pensões tinha-se iniciado há apenas três meses. Anteriormente era feito por distrito e nas ilhas pelos serviços regionais.
Entretanto chega o agente que investigava o médico. Para além das dificuldades levantadas pela Ordem dos Médicos, o agente informou que o senhor Doutor residia em Ponta Delgada conseguindo o nome completo, morada, telefone do consultório e, com muita insistência do agente, o NIF.
«Mas foi preciso o nosso Director Nacional Adjunto falar com o senhor Bastonário», lamentava o polícia pela trapalhada que passou.
Tendo os dados dá indicação ao agente para ir ter com uma amiga que trabalhava no Departamento de Fraudes Fiscais do Ministério das Finanças. Tirou do bolso um cartão de visita e escreveu umas palavras com profundo agradecimento tendo o subordinado as coordenadas e porta aberta até à Doutora, sua colega de curso. Seguidamente pede uma ajuda ao Inspector da Segurança Social
«Não terá um amigo ou conhecido que nos possa ajudar a ter mais conhecimento deste senhor. Digo filhos, irmãos, enfim algo que o senhor Inspector ache pertinente para ajudar a investigação?»
Na verdade, passou algum tempo até dando tempo ao agente de regressar e relatar o que conseguiu. De facto, o senhor Doutor é abastado, não tem nenhuma suspeita de fraude fiscal, e tem muito património na Ilha do Faial, para além da Terceira e alguma coisa em São Jorge.
«Comprado ou por herança?»
«A grande parte foi comprado, principalmente na Ilha do Faial.»
Entretanto chega o Inspector da Segurança Social. Apesar das dificuldades sempre conseguiu saber que tem um filho informático que trabalha nos Estados Unidos.
O «Judite» não duvidava de que se tratava de um crime de falsificação de documento e que o processo do óbito conseguiu ser introduzido na informática da Segurança Social. Mas como?
Lembrou-se, entretanto, do subsídio de funeral. Se existe e quem terá recebido?
O Inspector da Segurança Social tornou a sair e foi à informática não demorando muito. Existe e foi pago ao senhor dos Açores. Até o responsável ficou apavorado como tal aconteceu.
O «Judite» torna a acender o cachimbo. A sala até fazia lembrar Londres no tempo do Fog.
Começava a suspeitar de uma rede. Mas faltava pelo menos um elo. Como tal certidão dá entrada supostamente na Segurança Social dos Açores e ninguém se apercebe?
Pede novamente a colaboração do seu colega da Segurança Social para seguir o rasto deste documento. Quem deu entrada, quem validou e quem o introduziu no sistema informático.
Iria ser demorado porque teria de ter despacho superior para entrar numa área confidencial da informática dada a delicadeza da situação para a própria instituição. Porém seguramente o mais tardar até 48 horas contactaria a Polícia Judiciária.
O «Judite» concordou perfeitamente porque seria também necessário investigar o médico e o filho do senhor Cipriano, supostamente informático de profissão, concluindo que não haveria perda de tempo na investigação.
Vai logo a caminho do gabinete do Director Nacional Adjunto porque era essencial os serviços açoreanos colaborarem activamente nesta busca, mas sem o seu departamento perder o controlo dos avanços do processo.
Ao contrário do que se esperava a «Judite dos Açores» colaborou imenso e numa semana enviou um extenso relatório de actividades ilícitas do senhor Doutor, que há tempo já andava a ser investigado. E também sobre o informático que embora estivesse nos Estados Unidos trabalhava para uma das maiores empresas do sector. Inclusive tinha lá tirado o curso de Engenharia Informática em Boston. Também através da Guarda Fiscal, que patrulhava as fronteiras, soube-se que esteve no Faial e em Ponta Delgada, faz dois meses. Este senhor Engenheiro é cidadão americano e sujeito a um controlo especial, curiosamente a pedido do FBI. O relatório descreveu as viagens com os respectivos voos e dias.
Mas o mais importante vinha relatado. O senhor Doutor recebeu várias chamadas nesse período de cabines telefónicas, tanto de Ponta Delgada como da cidade da Horta, capital da Ilha do Faial.
Entretanto a Inspeção-Geral da Segurança Social também chamou o senhor Inspector da Polícia Judiciária e a conversa foi interessante. Há pelo menos cinco funcionários dos serviços açoreanos em fraudes com dinheiros em subsídios pagos ilicitamente e a informática cruzou imensa informação. Só que no Continente esta situação terá sido a única.
«Mas como o documento entrou no vosso sistema?»
Obviamente introduzido por um dos suspeitos e como os nomes eram iguais o sistema não deu erro. Na verdade, na questão das moradas é uma falha que a informática já está a tratar de não voltar a acontecer.
«Acha que um potente computador consegue entrar no vosso sistema?»
Curiosamente um dos funcionários falou nessa possibilidade. Obviamente que com um processo em investigação não podia dar todos os detalhes e nada disse.
«Fez bem. Agradeço que me prepare um dossier o mais detalhado possível para levar ao Ministério Público de Ponta Delgada. Do nosso lado já temos as provas que precisamos.»
Quanto ao jovem também o FBI já andava no seu encalço e até agradece que seja detido em Portugal. Eles forneceram os detalhes da manobra. De facto, o grupo criminoso de que faz parte entrou em vários sistemas informáticos de instituições portuguesas, entre elas a Segurança Social. Tinham um plano mais vasto, mas usaram o nome de Cipriano Cassolo de Sousa porque, ao contrário do expectável, tinham esperança que o senhor só agisse no mês seguinte, dando tempo para apagar a base de dados do desgraçado.
E dois dias depois segue uma equipa da Polícia Judiciária a caminho de Ponta Delgada levando dos Serviços Forenses os peritos em informática e em falsificação de documentos.
Entretanto cada minuto que passa na aldeia o amigo Cipriano parece menos um ano de vida. Já nem bebia o bagacinho na Tasca do Zé Manel para não ir às poupanças. Mas nessa manhã ouve a campainha do carteiro. Era o vale postal.
Com jubilo foi em felicidade até à Tasca e pede logo um café e um bagaço.
«Então já tás curado, Cipriano?»
«Cala a boca e passa-me o telefone.»
Liga então ao Felismino ficando este muito surpreendido, mas parabenizando-o.
Após a chamada vai ao computador. E só aparece o nome do seu amigo com a indicação da emissão do vale postal… Quanto ao outro, desapareceu.
Kuíto, aos 28 de Novembro de 2024
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Grande história, que de verídica, parece ter tudo. Apenas os correios (CTT) desapareceram; será que o Doutor dos Açores teve alguma coisa a ver com isto? abraço