Fernando Mamede fez o que nenhum português fizera: bater um recorde do mundo e anos antes, lá em Estocolmo, tinha começado a cumprir o seu destino com uma mentira (continuando Moniz Pereira sem poder sair de casa, seis meses assim esteve… (2).
Fernando Mamede fez o que nenhum português fizera…
bater um recorde do mundo e anos antes, lá em Estocolmo,
tinha começado a cumprir o seu destino com uma mentira
(continuando Moniz Pereira sem poder sair de casa, seis meses assim esteve)…
(continuação)
Quando havia queixa no facto de o quilo de carne andar a 90 escudos
Foi em «A BOLA» do dia 30 de maio de 1974, esse entrevista a Vítor Serpa em que Fernando Mamede também o revelou (num toque de amargura):
– Começou a dizer-se que nós, agora, até já recebemos dinheiro para correr, que somos profissionais mas… a única verdade é que o Sporting nos dá apenas subsídios de alimentação e transporte. As pessoas julgam que são autênticas fortunas, estão totalmente enganados. Nós treinamos muito e precisamos de seguir regime de alimentação dispendiosa. julgam que, se não fossem os subsídios, eu poderia comprar carne a 90 escudos o quilo? Não podia, não!
O Sporting (e não só…) foi-lhe dando cada vez maiores subsídios mas decisivo foi o que, por essa altura, Moniz Pereira conseguiu: meio dia de dispensa dos trabalho para que os atletas envolvidos no Plano de Preparação para os Jogos Olímpicos de Montreal pudesse treinar duas vezes por dia – e galgando dos 400, dos 800 e dos 1500 metros para os 5000 e os 10000 metros – e foi em Estocolmo (também) que Fernando Mamede desatou a correr por mais longos trilhos para descobrir o melhor de si no seu destino…
Aos Jogos Olímpicos de Montreal já fora Carlos Lopes com problemas de lesão que apenas lhe permitiu que, no ano seguinte, levasse a medalha de prata dos Mundiais de corta-mato disputados em Dusseldorf…
– Lesionado o Lopes e lesionado o Aniceto, como nos corta-matos de dez quilómetros eu já só perdia com o Lopes, o professor Moniz Pereira decidiu, então, puxar-me de vez dos 1500 para os 5000 metros. Reconheço que ainda senti algum medo, contudo um medo diferente do medo que me atacava antes das grandes competições – mas, pensando: se eu tenha capacidade aeróbica muito grande, aliando isso à minha velocidade, talvez faça os 5000 com uma perna às costas. Lá fui, pois, à aventura, a aventura mudou a minha vida – e o que não esperava era que mudasse a minha relação com o Lopes. E não por culpa minha, bem pelo contrário…
Com Moniz Pereira doente e seis meses sem poder sair de casa a mentira que lhe mudou o destino em Estocolmo antes do recorde do Mundo em… Estocolmo
Foi em julho de 1978 e, por essa altura, o professor Moniz Pereira continuava preso em sua casa por causa da doença de pulmão que apanhara talvez por nunca fugir a uma chuvada para nos treinar, fosse no Estádio de Alvalade, fosse no Estádio Nacional, mal protegido, às vezes mal alimentado por não querer perder tempo nessas coisas.
– Depois, o professor até dizia, com o seu famoso sentido de humor, com a sua notável criatividade para falar de coisas sérias a brincar: «Há um recorde nacional que eu tenho e ninguém lhe dá grande importância: a doença do pulmão curada em seis meses.» Vendo-o assim, houve dois ou três treinadores que, sorrateiros, quiseram apanhar-lhe o grupo de trabalho, ficar-lhe com o grupo de trabalho – e fui eu quem saltou a terreiro, determinando-o, fui eu que me impus: «Não, não há treinador nenhum para o lugar do professor, a gente não precisa disso, o professor continua a fazer-nos os planos, o que a gente precisa, pois, é de um cronometrista, não é de um treinador!» Assim foi e, para nos acompanhar e para nos tirar os tempos, o professor escolheu o Gigi… Sim, o Gilberto Cardoso que, tendo sido diretor do Benfica, era, por essa altura, diretor da federação – e foi com o Gigi que em fui a Estocolmo fazer 5000 metros. Não posso, nunca poderia esquecer esse dia: 4 de julho de 1978. Ao dizerem, na véspera, ao Gigi que eu iria na série B, indo o Aniceto que, em Montreal, pusera o recorde nacional em 13.21,93, na série A, ele resignou-se e ao comunicar-mo, eu pus-me logo a disparatar com ele, o mais brando que me ouviu foi: «Não, Gigi, não pode ser! Vá já lá dizer aos gajos que se enganara, que eu tenho 13.22 e, por isso, o meu lugar terá de ser na primeira série!» Mentira, claro, não tinha nada 13.22, mas, como, nessa altura, não havia computadores para se confirmarem as marcas com facilidade, lá me meteram na série dos melhores. Por pouco não ganhei ao Marty Liquori, aquele americano que depois virou escritor e estrela de TV e vinha da medalha de prata nos 5000 metros da Taça do Mundo, por pouco não ganhei ao Rod Dixon, o neozelandês que se dizia que lá fora para atacar o recorde do mundo. O recorde do mundo era o recorde da Europa do Emil Puttemans: 13.13,0 minutos – e, acabando eu em terceiro lugar, com 13.17,78 minutos, de Estocolmo saí com uma das melhores marcas europeias de todos os tempos.
«Toda a gente sabe que eu sou um indivíduo nervoso…»
Era já 1981 e a 30 de maio Fernando Mamede tornou-se o primeiro português a bater um recorde da Europa, correndo, em Alvalade, os 10 000 metros em 27.27,7 minutos. No ano seguinte, Carlos Lopes fez melhor – e a resposta de Fernando Mamede surgiu, 13 dias depois, no Meeting de Paris (a 9 de julho de 1982) em 27.22,95 minutos. Nele já havia, porém, sombra a marcar-lhe o destino: tendo medalhas (em grandes competições) para ganhar – perdia-as com a cabeça:
– Toda a gente sabe que sou um indivíduo nervoso e que esse nervosismo já por várias vezes me tem prejudicado durante provas. É uma característica que nasce com as pessoas e eu sempre fui assim. Achei que era altura de tentar corrigir-me e,por isso, recorri aos serviços do dr. Joseph Wilson. Não, não me sinto diminuído por ter sido tratado por um psicólogo; não estou nem nunca estive xéxé; simplesmente precisei de uma ajuda médica e estou satisfeito por ter tomado essa decisão, agora sinto-me muito melhor, mais desinibido, mais confiante». (Essa foi confissão que Leonor Pinhão lhe apanhou na entrevista publicada em «A BOLA» a 5 de julho de 1984).
Três dias antes, a meio quilómetro do fim dos 10 000 metros do DN Galan de Estocolmo, Lopes parecia lançado para se apoderar de novo do recorde de Mamede – mas, dessa vez, Mamede não deixou que os nervos lhe roubassem as pernas e cortando a meta em 27.13,81 minutos, estilhaçou o recorde do Mundo do queniano Henry Rono (27.22,5):
– Embora eu não fosse com esse objetivo ou com essa obsessão para lá, acabei por beneficiar de uma série de circunstâncias que aconteceram na corrida e, muito principalmente, do excelente momento de forma do Lopes, pois também bateu o recorde do Rono. O Lopes fez muito bem a corrida dele, impôs um andamento duríssimo para me tentar fugir. Simplesmente, eu não quebrei, fui com ele, não perdi terreno como muita gente estaria à espera, incluindo naturalmente, o Lopes. Na última volta e meia meti o meu andamento e acabei em primeiro lugar – e este espírito extremamente competitivo entre a minha corrida e a corrida do Lopes teria de levar, mais cedo ou mais tarde, à queda do record do Mundo, por um de nós…
Do suplício do doping às bruxas que lhe podem ter levado as medalhas que não ganhou (quando até a máquina venceu, a máquina transtornou…)
O pior da noite em Estocolmo foi a hora e meia em que penou no controlo anti-doping – e no regresso a Lisboa, não deixou igualmente de confessar a Leonor Pinhão o que era já o seu espírito (com os Jogos Olímpicos à vista):
– Gostava que todos se lembrassem de que ninguém, em Portugal, está mais interessado do que eu em obter uma medalha, ninguém tirará mais proveitos do que eu, se vier a ganhar uma medalha. Portanto, não comecem a exigir-me medalhas, porque uma medalha quero eu.
Apesar da «ajuda» do dr. Wilson (irmão de Mário Wilson, o treinador de futebol) – o triste fadário repetir-se-ia nos (ainda em maior dramatismo) em Los Angeles, nos Jogos Olímpicos. Tempos antes, testando, no Centro de Medicina, máquina de esforço programada para os supostos limites humanos – Fernando Mamede vencera a máquina. Tempos depois, ainda chorava ao lembrar-se desses dias negros…
– Como foi possível, se eu era o melhor do Mundo?!
…respondendo (ou não) à dúvida murmurando-o (certa vez numa grande entrevista em «A BOLA», já de carreira fechada – e imortal, apesar de tudo…):
– Foram… foram coisas esquisitas… No fundo, no fundo… talvez tenham sido bruxas… talvez tenham sido as bruxas que me levaram as medalhas que eu perdi. Só forças sobrenaturais poderiam bloquear-me assim…
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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