As nuvens encastelaram e escureceram de tal forma o céu que, ao meio dia, já quase parecia sol posto. O vento uivava. Volta e meia levantava-se em remoinho parecendo querer arrancar até os pinheiros do pinhal. A água do rio Zêzere juntava a barulheira da sua queda em cascata ao furor do vento entre as ramas e galhos das árvores por despir. De repente, tudo amainou…
O uivo calou-se e o chuáchuá da água ganhou um ritmo mais certo. Mas o escuro cada vez era mais cerrado. Os silvos das sirenes das fábricas anunciaram o fim de turno. Dali a nada, as fardas de cotim azuis e as batas de quadradinhos escapuliam-se quase em silêncio apressado. Até o pai chegou mais cedo do que costumava.
– Se não fosse o vento acendia uma fogueira na rua. A neve não tardará a cair! – afirmou ele à chegada depois de nos abraçar.
A nossa mãe já tinha o fogão grande de ferro com as duas fornalhas a crepitar. Assim, a cozinha camuflava bem o frio da rua. Esta já se cobria de farrapinhos brancos. Era o primeiro nevão da época a avisar que o inverno tinha chegado.
A luz mortiça da lâmpada e alguma labareda que escapava do fogão projectavam sombras nas paredes que faziam acreditar nos gnomos, duendes, renas voadoras e fantasmas. De certeza que o paizinho nos iria contar histórias lindas depois do jantar (acreditava eu).
A mãe serviu a sopa ainda a fumegar. Depois, havia pão centeio com uma fatia de queijo ou com doce de abóbora. E aquele «chá perfumado» da erva de São Roberto até aquecia o ar.
Ainda estávamos à mesa quando apareceu o Cigano Farrusco, o cão pastor do gado do ti Cabeças, que ladrava desesperado. Meu pai vestiu a samarra e desceu rapidamente a ver o que tinha acontecido. O cão mal viu meu pai, dava corridinhas e parava a ver se era seguido até lá mais acima, ao meio do pinhal, onde o dono estava tombado com uma perna muito maltratada. Depois, num esforço tremendo, foram descendo arrimados um ao outro até à porta da taverna. A minha mãe já tinha posto água tépida num alguidar de zinco. Meu pai, que fora ajudante de enfermeiro no quartel, sabia como proceder para lhe aliviar a dor.
O Cigano Farrusco não arredou do lado do dono. Minha mãe tentou distraí-lo com os restos da nossa ceia, mas ele fingiu que não tinha fome. Só quando a minha mãe trouxe as sopas para junto do ti Cabeças é que ele aceitou comer.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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