O Ti Zé Castanho gastava a vida na função de taberneiro e exibia uma altura de torre. Não tenho memória de ninguém de semelhante estatura…
Vivia dentro de uma camisola cinzenta. Nunca lhe conheci outra. O tecido era de uma velhice furada e fazia lembrar um mapa remendado. O pano representava a terra e os buracos eram o mar.
Junto ao pescoço sobressaíam dois colarinhos assimétricos como que a provar a existência de uma camisa. Nunca esta criatura vestiu um casaco, quer fosse verão ou inverno quer fizesse frio ou calor.
O Ti Castanho penteava o cabelo para trás e não usava boina nem chapéu.
Os braços eram arqueados e longos, mas vergava-os em sinal de utilidade. A cara era muito morena e comprida, a condizer com o corpo. Do lado esquerdo do rosto apresentava uma ruga que fazia lembrar uma desconforme cicatriz. Tinha voz de trovão mas raramente falava.
Passava o tempo a lavar copos na água imunda de um balde. De quando em vez, limpava com um pano húmido o tampo do balcão de madeira que de castanho se ia fazendo preto. Depois lavava, lavava e voltava a lavar e voltava a passar o pano que já havia perdido a cor.
Estava permanentemente mal humorado. Sempre que algum freguês entrava na tasca enfrentava-o, colocava ambos os punhos sobre o balcão e com ar inquiridor vociferava:
– Atão o que é que vossemecê quer?
O Jaquetas era um garotão que rondava os dezoito anos mas, pelo corpo e pela voz, parecia uma criança. Era tão fedelho quanto irrequieto. Quase nunca parava. Entrava e saia da taberna centenas de vezes por dia sem consumir o que quer que fosse. Só, de longe em longe, se o calor exagerasse e a sede apertasse bebia uma gasosa.
Mas, na vida, tudo cansa e o Jaquetas também se fartou da adolescência. Decidiu, um dia, fazer de adulto. Era uma tarde quente de primavera e o moleque botou-se à tasca para pedir, com a sua voz de miúdo, um copo de vinho. Ao ouvi-lo, o Ti Zé Castanho virou-se bruscamente, olhou-o de alto a baixo, verificou-lhe o porte físico, riu-se do esganiço da voz e, regressando ao seu natural estado de mau humor, disparou-lhe do alto da enorme envergadura:
– Olha lá! Isso é voz de quem bebe? Põe-te a mexer daqui. Eu, não vendo vinho a garotos!
O Jaquetas virou redondo que nem um pião antes de ter tempo de digerir o vexame. Mas, conhecedor do mau humor do Castanho, foi matutando numa solução que não incluísse contrariá-lo.
Chegado a casa dispôs-se a treinar uma voz ébria que lhe permitisse enjorcar meio quartilho. E repetiu até á exaustão, engrossando, de cada vez, a voz:
– Quero um copo de vinho… quero um copo de vinho… quero um copo de vinho…
Quando entendeu que a voz já era grossa o suficiente regressou à tasca decidido. Antes de entrar encheu o peito de ar. Depois arredou os postigos e mandou-se de rompante. Dirigiu-se ao balcão. Empertigou-se e gritou para o Ti Zé Castanho com a voz mais vultosa que conseguiu:
– Quero um copo de vinho.
O Castanho virou-se incrédulo, esbugalhou os olhos perante a mudança de voz do rapazola e balbuciou:
– Branco ou tinto?
O Jaquetas, que só tinha treinado o pedido, lamentou-se novamente com a voz esganiçada:
– Agora é que vossemecê me lixou!
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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