Fernando Mamede fez o que nenhum português fizera: bater um recorde do mundo e anos antes, lá em Estocolmo, tinha começado a cumprir o seu destino com uma mentira (continuando Moniz Pereira sem poder sair de casa, seis meses assim esteve… (1).
Fernando Mamede fez o que nenhum português fizera…
bater um recorde do mundo e anos antes, lá em Estocolmo,
tinha começado a cumprir o seu destino com uma mentira
(continuando Moniz Pereira sem poder sair de casa, seis meses assim esteve)…
O que nunca nenhum português fizera: bater um recorde do mundo no atletismo, fê-lo, fulgurante, nos 10.000 metros do Meeting de Estocolmo (a 2 de Julho de 1984), Fernando Mamede impedindo, graças a vertiginosa última volta em 57 segundos (e uns piquinhos…), que fosse Carlos Lopes a fazê-lo – e foi assim que agarrou a eternidade mesmo que agora o diga (com mais ou menos amargor…):
– Infelizmente, a minha cabeça nunca quis nada com medalhas…
Nascendo a 1 de novembro de 1951 (no Dia de Todos os Santos, portanto) para seu padrinho de batismo o pai escolheu o dono da alfaiataria onde trabalhava:
– Como o meu padrinho era sportinguista fanático, mesmo sendo benfiquista o meu pai, por empenho e insistência do meu padrinho cresci a torcer pelo Sporting, de mim me lembro sempre a ser do Sporting. Crescendo traquina, levando às vezes das boas por a minha mãe me querer sempre muito direitinho – a maior encrenca era outra, porém: vendo-me magrinho e escanzelado, passava a vida a correr atrás de mim com o prato da sopa ou de outra coisa qualquer para eu comer. Queria lá eu comida! A minha perdição era andar rua a jogar à bola ou a jogar hóquei com bolas feitas de meias com sticks inventados e, claro, sem patins. Ou, então, na nossa Volta a Portugal, uma volta a Portugal com os nomes os números e os nomes dos ciclistas escritos em papéis colados nas nossas costas e, como também não tínhamos bicicletas, era a pé que fazíamos as corridas das várias etapas.
Sofrendo o pai um AVC de ferro na mão, deixou de jogar futebol e foi por isso que veio para o Sporting…
Portugal já tinha um grande nome no atletismo internacional, o Manuel Faria que ganhara a São Silvestre de São Paulo por duas vezes mas em Beja, atletismo era coisa que não havia…
– Hóquei em patins até havia mas calçar patins foi apetência que nunca senti. E havia o que havia em todo o lado: futebol. Disso gostava, até tinha jeito e fui jogar futebol para o Despertar de Beja. No ano seguinte saltei, para o Desportivo de Beja – que era o que o meu pai mais queria. E, num ápice e num capricho entrou o atletismo na minha vida, transformando-a. Cabendo ao professor de Educação Física escolher um dos alunos para representar a nossa escola nas provas de corta-mato, entre mim e um outro, optou por mim – e a minha primeira corrida foi em Moura, ganhei. Tinha 15 anos e nos dois anos seguintes, o único atletismo que fiz foi o das provas da Mocidade Portuguesa: dois corta-matos e duas provas de pista por época, primeiro no campeonato distrital, depois no Nacional.
Treinava sozinho, se é que se podia chamar a isso treinar. Tendo Educação Física duas vezes por semana, enquanto os outros ficavam na escola a fazer os exercícios e os desportos que calhasse, a mim o professor mandava-me ir a correr até à Boavista e voltar. Depois, à tarde, tinha o futebol, só deixei de jogar no Desportivo quando vim para o Sporting.
Os primeiros sapatos de bicos que teve pagou-os do seu bolso com o pouco dinheiro que tinha guardado, foram da Socidel de Lisboa para Beja em encomenda dos correios. Chegando-se, então, a 1968, Fernando Mamede ganhou o Nacional de Corta-Mato em Viseu – e, depois, os 1000 metros na pista. Quer numa quer na outra vitória estavam as provas inundadas de atletas federados, alguns que já treinavam todos os dias:
– Na vez dos 1000 metros, ouvindo-me, no balneário, um desses craques que estavam no Sporting murmurar que o que mais gostaria era de também correr pelo Sporting, já não sei quem disse-me coisa parecida com «talvez… quem sabe…» Querer ir para o Sporting não era apenas por eu ser sportinguista: já lia os jornais todos, sabia que o professor Moniz Pereira estivera quase, quase, a levar o Manuel de Oliveira ao pódio dos Jogos Olímpicos – e não é que, no dia seguinte, me apareceu um diretor do Sporting com ficha para eu assinar? Ainda não tinha 18 anos e a minha vida levara um abalo tremendo. Estando o meu pai a trabalhar no seu atelier de alfaiate, um AVC atirou-o de súbito para o lado, não voltou mais a falar. Julgo que tal se devera ao excesso de atividades lá na alfaiataria e, sobretudo, a ter como função trabalhar com um ferro de engomar muito pesado e a carvão. Não, o meu pai não ficou só sem fala, também ficou paralisado de um lado. Ainda andou a tratar-se no Alcoitão, pouco ou nada melhorou – e, ao vê-lo, inutilizado para o trabalho lá convenci a minha mãe (que não o queria) a deixar-me vir para o Sporting, o que ela queria era que eu continuasse a estudar, a fazer o Curso de Comércio. Comigo a estudar, o sustento da casa provinha do ordenado do meu pai e do aluguer de um quarto em nossa casa e, inutilizado para o trabalho, ficou com uma reforma de invalidez de… quatro escudos por mês. Não, não é erro, é mesmo verdade – era assim Portugal nesse tempo…
Com a melhor marca da Europa de juniores, não quis apurar-se para a final…
Para que viesse para Lisboa, o Sporting arranjou-lhe emprego na sede da Rua do Passadiço, na secção de contabilidade…
– … e, julgando eu que vinha para fazer os 3000 ou os 5000 metros afinal não, o professor, com o seu feeling tão especial, ao cabo de meia dúzia de dias meteu-me nos 400 e nos 800 metros. No princípio não percebi muito bem porquê, depois sim – com pouco mais de um ano de atletismo a sério já estava a fazer a melhor marca da Europa de Juniores nos 800 metros, já me tinha tornado recordista nacional com 1.49,7. Assim cheguei aos Europeus de Juniores de 1970 – e logo lá senti um esquisito medo a travar-me as pernas, um medo de certos desafios ou de certas responsabilidades mais altas que surgia, num flash, sem que eu o controlasse, o vencesse. Julgando que a melhor marca da Europa de 800 metros me obrigava a ganhar a medalha de ouro, indo em lugar de apuramento, nos últimos metros desliguei de propósito para que outros me ultrapassassem! Era o medo de ter de ir à final lutar pelas medalhas e, não me qualificando por não querer, não contei nada do que sentira ao professor Moniz Pereira, queixei-me simplesmente de um pé a doer sem que o pé doesse… Se mesmo a especializar-me em provas mais curtas, o professor Moniz Pereira me metia a fazer footing com os atletas das provas mais longas, quando, naqueles treinos à quenianos antes sequer de se falar de quenianos, o Lopes punha aquilo a fazer faísca, sobretudo em Monsanto, aí eu, corredor de 400 e 800 metros, não sentia medo nenhum, aí eu não deixava de ir, atrevido, atrás dele, aguentando-o para espanto de toda a gente, mesmo quando os outros para o aguentarem tinham de ficar com os bofes de fora.
Na contabilidade do Sporting conhecera a Alzira, logo se encantando com ela…
– … bonita e loirinha – e, em setembro de 1971, casámo-nos na Igreja de São José, perto do quarto onde eu morava, na Rua do Passadiço. Fomos, então, viver para uns prédios acabados de construir na Calçada de Carriche, era tanto o barulho dos carros a subirem a ladeira que tivemos de mudar o quarto de dormir para as traseiras de modo a que eu descansasse – e a renda mensal era o que eu recebia de ordenado como empregado do Sporting: 2100 escudos. Lógico: depois havia por metade disso o tradicional: um subsídio para ajudar à alimentação e aos transportes. Mas, o que eu já tinha percebido, percebera-o, semanas antes, nos Europeus: que, lá fora a grande diferença deles para nós, era terem o que tinham: a possibilidade de os dispensarem de parte do trabalho para treinarem duas vezes por dia. Até com os espanhóis já era assim – e, a alguns de nós, às vezes até se descontavam no ordenado os dias em que o atletismo obrigasse a faltar ao emprego.
Os 15 contos que o livraram de ir para a guerra em África (que era coisa que não o assustava, bem pelo contrário…)
Chamado à tropa em outubro de 1972, fazendo a recruta em Leiria, Fernando Mamede achou que em Lisboa só havia uma especialidade onde pudesse continuar a treinar sem problemas: a Polícia Militar – só que, mal lá entrou, atiraram-me com a informação: «Estás mobilizado para Moçambique, está toda a companhia mobilizada para lá!»
– … e eu até pensei: «Ora cá está uma bela oportunidade de passar para a África do Sul que, mesmo que impedida de entrar nas grandes competições internacionais por causa do apartheid, tinha grandes valores internacionais nos 800 e nos 1500 metros». A Alzira foi logo aos arames com essa ideia do salto em África, o professor Moniz Pereira também – e foi então que no Sporting, julgo que com a ajuda da Federação, se arranjaram 15 contos para gratificar colega de outro esquadrão que se voluntariou para ir para Moçambique em meu lugar. Não, não fiquei na PM, também foi através do Sporting que se arranjou forma de me mandarem para a Defesa Nacional, na Avenida Infante Santo. Quando lá cheguei fui ter com o general que fazia sauna no Sporting comigo, nem continência nem nada lhe fiz, ele chamou o capitão que distribuía o serviço e ordenou-lhe que me arranjasse serviço para mim de forma a eu poder continuar a treinar – e foi assim que me despacharam para a Comissão de Educação Física das Forças Armadas. Uma maravilha: fazia serviço de escritório, entrava às duas da tarde e saía às cinco – tinha, enfim, o que nunca tivera, na verdade: tempo para treinar à vontade, possibilidade de assim melhorar cada vez mais os recordes nacionais, a partir dos 500 metros, só não me aventurando aos 3000 metros obstáculos por medo, aí medo de cair e não apenas na vala…
Deixando Carlos Lopes de trabalhar como serralheiro, o Sporting arranjou-lhe lugar no «Diário Popular» do presidente Brás Medeiros e, nessa função, teve, muitas vezes, de ir entregar as provas do jornal à Censura…
– A mim, lá na tropa, ainda me mandaram também várias vezes à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, entregar correspondência mas, obviamente, havia coisas que em Portugal não se sabiam, não se podiam saber. Entre o que não se podia saber por a Censura não o permitir, estavam atrocidades como a que se vivera quando eu ainda era pequenino em Baleizão, a 15 quilómetros de Beja: Catarina Eufémia morta a tiro pela GNR, durante uma manifestação de mulheres da ceifa do trigo que ganhavam 12 escudos por dia e queriam apenas que lhes dessem mais cinco tostões. Isso que eu sei agora, não sabia quando, a pretexto de ter posto o recorde ibérico dos 1500 metros a menos de 3.40 minutos, exatamente um mês após a revolução de 25 de abril, Vítor Serpa me foi fazer entrevista – e, em «A BOLA», apareceu título enorme a dizer que eu não sabia quem era a Catarina Eufémia. Só depois se soube, sabendo-se até que fora o doutor Pinheiro, o médico que me salvara a vida aos três anos, que lhe fizera ao autópsia e não era verdade que estivesse grávida, verdade era que na altura do tiro que o tenente da GNR lhe deu tinha filha pequenina ao colo.
(continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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