É hora de voltarmos emigração pura, dura e grandiosa: a emigração da odisseia francesa que mais domina quer a minha aldeia quer a nossa região toda. Quando se olha de cima e se pensa em migração, só a França lastra no nosso olhar. Tudo o resto são pequenas gotas ou pouco mais. Falemos então de casteleirenses em Paris, basicamente. Mas não resisto e fecho com uma nota familiar para mim muito importante…
Começo por situar o meu raciocínio e o meu entendimento do fenómeno da emigração e suas causas: o baixíssimo nível de vida, a vida impossível de muita gente. Não foi turismo. Não foi divertido. Não foi uma aventura ligeira. Não: foi muito pesado. Foi duro, foi dramático, foi fruto do desespero.
É certo que foi uma janela aberta – mas no alto de uma serra muito difícil de subir… Antes de mais, porque o regime não permitia a saída do País.
Era preciso ir «a salto» – uma travessia dramática de serranias através de toda a Espanha e depois até Paris, Lyon, Pau, Dijon, Clermont Ferrand… «quoi que ce soit» (seja o que for, fosse o que fosse).
Vamos primeiro às causas, para evitar as visões românticas e nos atermos ao realismo duro da vida real e bem dura.
Causas e consequências
Naquela altura, poucas eram as famílias que tinham sequer uns escudos de rendimento. Podiam ter batatas, couves e feijões para comer – e algumas famílias nem isso, porque nem sequer tinham um pequeno terreno para isso. Mas os produtos da terra nem bastavam para a alimentação. Havia que comprar os condimentos e as bebidas. Nem todos, mas em geral eram os mesmos que não tinham nem terra nem vinha nem cabras ou ovelhas… se é que me faço entender.
São esses, os desprotegidos de toda a «sorte» (chamavam-lhe sorte) que têm de um dia tomar a mais dramática de todas as decisões das suas vidas: partir, arriscar tudo, abandonar os seus. Ir de noite até para lá da fronteira, numa qualquer serra próxima, boa parte do caminho a pé, quilómetros e quilómetros, a ser mal tratados pelos homens de mão dos engajadores, a quem pagavam e por quem eram humilhados. Primeira humilhação. Uma brincadeira comparada com o que lhes vai acontecer quando chegarem aos «bâtiments» (batimãs) de Paris.
Da emigração resultaram em contradição duas consequências paralelas principais: por um lado, um grande sacrifício pessoal dos envolvidos (os que iam e os que ficavam); por outro lado, a melhoria da qualidade de vida, gradualmente, paulatinamente, mas melhoria. Indiscutível. Mesmo que à custa de coisas essenciais, como a saúde (muitos «rebentaram» por lá) e a dignidade: os franceses e não só atreviam-se a humilhá-los e a espezinhá-los – fosse discretamente, fosse às escâncaras…
Os primeiros anos em terras gaulesas
Vários membros da minha família se lançaram na aventura da emigração. Os primeiros anos foram de uma dureza incrível. Não que eles se queixassem. Não. Parece-me hoje e já o descobri tarde, quando eles começaram a contar umas coisas soltas e o meu cérebro ia ligando as coisas, parece-me hoje, dizia, que eles nem se davam conta da dureza e da humilhação.
Aprendi isso com a malta mais nova, fugida da tropa, seja do Casteleiro, seja de outras terras: soube quanto os franceses desprezavam os seus escravos idos da terra pobre de Portugal. Pensavam eles assim, os incultos, totalmente contra a corrente histórica da terra da Revolução Francesa, feita contra a humilhação e pela igualdade, etc.
A vida profissional dos nossos lá foi sempre complicada para quase todos: primeiro era preciso ser muito dócil, muito submisso, a fim de ficar legalizado. Os trabalhos em que estavam eram dos piores: construção civil, caminhos-de-ferro – coisas assim. Mas há pior: o medo permanente de ser posto na fronteira dava cabo do sistema nervoso de todos eles.
Para quase todos, a França significou também as artroses, as pernas partidas e «soldadas», as costas derreadas, os joelhos duros, os pulmões arruinados, muito álcool, muita complicação. E vários anos sem ver a família.
Mas a maioria sobreviveu a isso, em nome do objectivo: dar vida melhor aos filhos e aos netos. Praticamente todos o conseguiram. E isso é uma vitória sobre o que tinham passado em Portugal e sobre a má formação de muitos franceses.
Hoje
Por via da emigração, no Casteleiro, criou-se em certa altura um ambiente especial, pelo menos no mês de Agosto.
Fala-se aquele dialecto engraçado que é uma mistura do português, quer dizer, do português falado nos anos 50 numa aldeia beirã, com umas arranhadelas de algo parecido com o francês da rua e da obra em Paris nos «bidonvilles» (bairros de barracas) de Champigny ou em Clermont Ferrand…
Hoje, as famílias emigrantes, a maioria da aldeia, ou estão completamente adaptadas na França onde permanecem (pelo menos as terceira e quarta gerações) ou voltaram e vivem uma pacata vida rural, de padrão tradicional.
Encontro de tudo
Os adaptados à vida francesa têm hoje netos que ou não sabem ou não dizem uma palavra de português. E, nos poucos dias que passam na terra têm na aldeia, em geral, boas casas, boa vida.
Os que voltaram cedo, muitos por razões de saúde, voltaram ao que eram antes, mas agora com dinheiro de bolso: reformas, poupanças, etc. Seja como for, a aldeia depois da emigração nunca mais foi a mesma. Ficou mais diversificada, mais completa.
Muito mais e mais se devia dizer. Mas um tal fenómeno não cabe em letras. Nem em espaços razoáveis de um artigo que possa como tal ser lido. Há já imensas teses de mestrado e doutoramento – algumas bem longe do que vi e ouvi, digo com pena. Há já muitos livros, há músicas e há filmes.
Mas a mim, do que conheço, parece-me sempre que as coisas passaram longe de quem escreveu ou divulgou. Provavelmente, erro de análise da minha parte.
Finalmente, um registo da minha parte: as minhas homenagens sinceras aos emigrantes e suas famílias. Sejam os do Casteleiro, sejam os de toda a região.
Apesar de tudo…
Não resisto: um toque pessoal ficará muito bem a encerrar esta crónica de hoje. Falarei agora sobre a migração interna dos meus pais, quando eu era muito pequenito.
O meu pai e a minha mãe foram migrantes durante algum tempo da minha infância. Eu fui ficando na aldeia porque, como estava ainda na primária, não quiseram que eu andasse com eles a «correr mundo». Mas na férias ia muitas vezes com eles e conheci todos os locais onde viveram: Sabugal, Fundão e Santarém.
Tenho mesmo uma vaga ideia de terem vivido algum tempo em Santo Estêvão, mas não juro. Se assim foi, eu era demasiado pequenito e não tenho essa memória bem definida, apenas uma impressão superficial.
Acho que no Sabugal morámos ali para os lados do Rio.
No Fundão, foi de certeza na Rua da Cale (hoje célebre), onde morava a irmão da Amália e onde ela ia muitas vezes.
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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