Estava-se no início dos anos sessenta e Portugal a começar a ter problemas de soberania em África na maioria das suas então Províncias Ultramarinas. Como país vocacionado para o mar, o interior dos territórios ficava, tal como hoje, ao abandono. «Casa roubada trancas na porta», o então Ministério do Exército criou umas unidades especiais para serem alocadas no interior do continente africano.
Um dos principais problemas que existia era o relacionamento com a polícia política, a PIDE, que muitas das vezes envolvia o Exército em buscas infrutíferas contra núcleos de resistência armada ou dos seus líderes.
Neste contexto o Capitão chama o comandante do pelotão de serviços especiais, que se caracterizava basicamente por ter três secções: caçadores, engenharia e artilharia ligeira.
«Bom dia senhor alferes. Temos uma ordem recebida do comando para acompanhar um senhor agente da PIDE. Trata-se de uma operação especial porque, segundo o texto, foi identificada a localização de um destacado líder de um dos movimentos independentistas que a todo o custo deve ser detido ou até eliminado. A zona em questão é no Musseque da Kuanda, no município de Valadim.»
Neste contexto o Capitão chama o comandante do pelotão de serviços especiais, que se caracterizava basicamente por ter três secções: caçadores, engenharia e artilharia ligeira.
Valadim distava 300 quilómetros, pelo menos em picada, da Unidade Territorial Militar. Como sempre o Comandante deixava ao critério do ser oficial os meios e os efectivos que necessitava para o êxito da missão, não deixando de salientar de que não queria vítimas mortais nos seus efectivos. Nunca até à data houve uma baixa em combate.
O Alferes conhecia bem todo o território que estava na jurisdição do aquartelamento e sabia que havia resistência em Valadim, pese embora algumas vezes a seu pelotão lá fosse em auxílio das populações devido a estragos provocados pelas intensas chuvadas que destruíam acessos, nomeadamente ao rio, principal fonte de abastecimento de água daquelas gentes.
Em face do contexto apresentado optou por levar apenas uma esquadra, ou seja cinco homens, sendo um deles um sargento sapador de engenharia não vá o local estar armadilhado. O PIDE iria de helicóptero Alouette no dia e hora que os operacionais deveriam chegar num local seguro e a cinco quilómetros da sede do município.
Através do rádio telegrafista foi possível o encontro para aterrar o helicóptero e receber mais orientações do PIDE. Basicamente disse o que já sabiam só que não havia tempo a perder. Porém o Alferes preferia a noite porque normalmente as pessoas recolhem logo que o sol se põe e assim a busca seria mais cautelosa e acima de tudo não deveriam ser identificados porque, principalmente as crianças, são usadas como correio. Porém o PIDE só insistia no efeito surpresa, deixando o oficial céptico porque demonstrava que pouco ou nada sabia da realidade africana. Mas puxando do seu galão respondeu educadamente que cada parte saberia fazer a missão como melhor entendesse.
O plano, confidencial apenas com os militares envolvidos, seria uma busca cirúrgica em torno de um sector do bairro já conhecido. Nada de rádios, e procurar escutar as conversas daquelas humildes casas que nem janelas tinham. O cabo socorrista é o rádio telegrafista ficavam em zona segura e só avançariam se ouvissem tiros nunca entrando no teatro de operações, salvo se ouvissem gritar por alguém da esquadra.
A missão começou num profundo silêncio ouvindo-se conversas principalmente na língua materna não sendo problema porque tiveram formação na mesma.
Iam prosseguindo calmamente afastados sensivelmente cinco metro e em duas colunas, até que ouvem um barulho de engatilhar armas parando de imediato e deitando-se no chão. A escuridão dominava o ambiente. Até que… «alguém falou do outro lado».
Estariam cercados não valia a pena ripostarem ou tentarem fugir. Neste momento seriam prisioneiros.
O Alferes mal se levantou deu ordem para atirarem as armas e granadas para o chão. Mas respondeu ao aviso: «Não será possível conversarmos um pouco antes de qualquer decisão precipitada. A minha sugestão seria deixarem ir os meus homens e eu, como oficial do Exército Português, ficaria como refém evitando um aumento da escalada da tensão que se começa a instalar. Sendo refém não haverá retaliações dos reforços que temos em prontidão.»
Fez-se um breve silêncio durante alguns minutos. Uma outra voz acabou por aceitar as condições propostas mas as armas tinham de ficar. O Alferes respondeu calmamente que o mais sensato seriam ficar com os carregadores e granadas. A arma é inofensiva sem munições e além disso os pobres soldados teriam problemas porque a arma é um pertence de grande responsabilidade e, injustamente, iriam ter consequências disciplinares que aparentemente não se justificam.
Mais um silêncio, mas mais prolongado.
«Tá bem, mas as pistolas ficam.»
E assim os libertados saíram em silêncio levando as armas sem munições deitando o Alferes a sua pistola para o lado de onde ouvia o som.
De seguida tirou os galões e entregou-se como prisioneiro. Foi encaminhado para uma casa com luz de velas onde estava um africano armado e disse para entrar. Minutos depois chegam alguns mais e fizeram um semi-círculo à sua volta. Tentaram saber o motivo da missão.
«O comando apenas nos enviou para aqui para uma acção de patrulhamento sem justificação plausível. Ver se haveria actividade considerada subversiva. Nada mais. Por isso apenas éramos quatro.»
Perguntaram se queria beber ou comer algo. Pediu apenas um chá. A água era fervida e assim de contrair uma doença era menor. E geralmente era feito com ervas locais que já tinha provado e o gosto agradável.
Arranjaram-lhe um banco pequeno artesanal em madeira e pele de algum animal e sentou-se bebendo o chá a escaldar, deixando o mais confiante.
Entretanto apagam todas as luzes e disseram para ficar quieto, sentindo algumas armas voltadas para ele.
Abre-se a porta entra alguém e sentiu que lhe puseram uma cadeira. Ele nada via, mas notou que a pessoa mostrava uma postura calma.
«Boa noite senhor Alferes.»
O som era diferente. Um português bem pronunciado e um tom mais calmo que os seus camaradas.
«Boa noite senhor Doutor.»
Sentiu um ligeiro sorriso no seu interlocutor perguntando ao Alferes como sabia se era doutor.
«Pressentimento. Apenas pressentimento.»
Perguntou ao português como sabia que ele, o tal doutor, estava ali.
Esta pergunta desmascarou o angolano. De facto era verdade. O Alferes pensou bem na resposta e com verdade não se deve responder com mentira.
– Foi através da nossa polícia política.
– Quer dizer vossa, certo?
– O senhor Doutor é livre de interpretar como entender.
O homem voltou a sorrir, mostrando agrado na resposta.
A conversa foi-se desenvolvendo em tom de respeito mas com alguns desafios. Um deles se considerava que eram terroristas, mas a resposta foi sucinta:
«Para mim são guerrilheiros tal como eu, embora em campos opostos.»
Também gostou da resposta. Mas ainda lançou mais desafios ao português. «O que achava deste conflito?»
«Bem senhor Doutor, eu apenas sou um oficial inferior. Isto significa que cumpro ordens do meu comando. Sinceramente às vezes não o entendo porque já vim aqui algumas vezes ajudar a população e com autorização superior. Pouco mais posso adiantar. Peço-lhe imensa desculpa.»
Apenas quis saber dos tais reforços. E a resposta foi a verdade. Apenas dois homens de serviços de apoio.
«Vou acreditar na sua sinceridade. Também, na verdade, já confirmada pelos nossos camaradas. Por isso não vejo motivo de o reter, embora mantendo esta nossa sinceridade, não tenha a unanimidade do nosso lado. Vai voltar, mas como compreende com algumas condições. Vai ter de deixar cá tudo o que tem nos bolsos, mas fica com a chapa que o identifica.»
«Agradeço muito o seu gesto senhor Doutor.»
Ao levantar-se da cadeira apenas disse para manter confidencialidade do encontro. Na realidade era o preço a pagar.
Depois vendaram-lhe os olhos andou uns quilómetros a pé com escolta, e foi dentro de um camião. A viagem ainda durou umas horas em picada até que parou.
«Salta e caminha em frente. Temos armas apontadas se olhares para trás. Entendido?»
E assim o fez. A zona era-lhe totalmente desconhecida. Mas foi andando e andando até que encontra uma Unimog do Exército. Faz-lhe sinal e param.
Sai um Sargento dos Caçadores e pergunta-lhe quem é. Mostra-lhe a chapa e pede o favor de o levarem ao comando. Depois de revistado tentaram fazer-lhe perguntas mas optou pelo silêncio e pediu por tudo que o levassem ao comando. Havendo o comprovativo da chapa não havia outra possibilidade. Ainda para mais identificava-o como oficial.
Chegou ao comando e foi entregue à polícia militar. Após contacto com a sua unidade a uns 200 quilómetros, confirmaram a sua identificação e estava dado como desaparecido não adiantando mais nada.
O Capitão da Companhia de Comando e Serviços cedeu-lhe os galões e um boné e foi transferido de helicóptero para a sua unidade.
Não foi recebido como esperava. O seu comandante reconheceu o seu esforço mas a PIDE queria-o o interrogar. Ele pediu por tudo que preferia ser julgado pelo tribunal militar do que ir para a PIDE.
Conseguiu o que queria graças à influência do Ministro do Exército que também não gostava que a PIDE se intrometesse em operações militares.
Foi parco nas declarações que prestou ao juiz o que, de certa forma, confirmava o relatório da PIDE. No entanto não considerou que houvesse crime de traição à Pátria mas sim um acto de sobrevivência.
Porém o acórdão despromoveu-o a Primeiro Sargento, mais um ano de serviço militar e transferência para a Guiné.
Tudo isto porque no entendimento do Júri poderia ter ajudado mais os interesses da Nação.
Já depois do 25 de Abril e a título póstumo foi promovido a Major e a família recebeu uma indemnização por perca das regalias salariais mas até à data de 24 de Abril de 1974.
Luanda, 25 de Novembro de 2024
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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