Quatro versos apenas bastaram para que, no génio da sua poesia, Manuel Alegre (filho de Francisco Duarte que, por finais dos anos 20, pusera o recorde de Portugal do salto com vara em 3,30 metros) revelasse o espírito (e não só…) que atirou Carlos Lopes à imortalidade… (3).
Mais do que ser primeiro
Herói é quem
Sabe dar-se inteiro
E dentro de si mesmo ir mais além
(Continuação)
Depois das sapatilhas, os bicos experimentados ladeira acima, ladeira abaixo (e o privilégio do banho de água quente)
Sendo a toda a gente proibido jogar cartas nos comboios, «expressamente proibidos» de frequentar casinos estavam os funcionários públicos, mesmo que lá fossem apenas para atirar olho às pernas das bailarinas dos seus espetáculos – e, nesse ano de 1966, o «grandioso réveillon» do Casino do Estoril fez-se com Amália Rodrigues entre o Ballet de Buenos Aires – e quem lá esteve (os «homens obrigatoriamente de smoking») pagou 350 escudos pela «ceia de fim de ano».
E 25 escudos custou ir ao Monumental ver Madalena Sotto, Jacinto Ramos, Irene Cruz e João Lourenço) em «Descalços no Parque», comédia de Neil Simon (que viraria filme com Robert Redford e Jane Fonda). Só pôde ser vista por «adultos», palavra estava vincada em todos os anúncios da peça e significava, assim, que apenas era permitida a maiores de 23 anos e, nesse caso, a limitação devia-se, sobretudo, a Corie Bratter ser o que era: «uma libertária romântica.»
Nessa noite de «Descalços no Parque» no seu frenesim foi Carlos Lopes para a São Silvestre de Viseu com sapatilhas que o Lusitano de Vildemoinhos lhe dera – e privilégio maior teve (naturalmente) atirado aos pés para o ataque ao Campeonato de Viseu de Corta-Mato, quinze dias depois (onde, na verdade, se sentiu que era mesmo maravilhoso o seu destino no futuro em jogo que se lhe abria):
– Não, não me emprestaram nada uns bicos, os bicos já eram meus. O Lusitano foi comprá-los antes da prova e, no dia em que mos deram, corri a calçá-los para os experimentar junto a casa, numa rua íngreme que não era alcatroada. Andei mais de uma hora a subir e a descer a ladeira – e a descê-la nunca deixava de pensar: Isto é uma maravilha, correr assim é uma maravilha. Maravilha voltou a ser a corrida, depois – deixando-me admirado pela forma como foi tão fácil tornar-me campeão de Viseu. Não precisei sequer de dois quilómetros para ter a certeza: «Olha, já ganhei, já ganhei isto!» A vitória, a minha primeira vitória, causou tal euforia no Lusitano que, a partir daí, o atletismo passaria a ter direito a banho de água quente, na sede do clube.
No pódio do Nacional de crosse apesar dos dois enganos…
Maior destaque do que o destaque dado ao Campeonato Nacional de Corta-Mato (com Anacleto Pinto a fazer o título) deu o «Diário de Lisboa» (na mesma página) a Lodemiro Leandro. Encontrando-se a pescar à cana junto da Estação Fluvial de Belém, ao aperceber-se de que um automóvel caíra, de rompante, ao rio, desembaraçou-se das roupas, mergulhou às águas em revolteio, abriu, lesto, a porta do carro e, retirando de lá o condutor, conduzindo-o, à superfície com vida. O mesmo fez à mulher que seguia no «lugar do morto». Também ela se salvou assim. Só já não foi a tempo de salvar mais dois dos outros tripulantes – e foi o bastante para que o jornal tratasse Lodemiro como «herói».
Por não ter sequer dois meses de atletismo, assombro e estupefação foi o que, nesse dia 30 de janeiro de 1966, Carlos Lopes esparralhou pela Quinta do Escurinho, em Évora (na prova em que Edmundo Ferraz, do Fluvial Portuense, sofreu queda que o atirou para o Hospital da Misericórdia, com luxação de um ombro):
– Para o Nacional de Crosse, na primeira vez em que saí de Viseu, fomos em carros de dirigentes do Lusitano – e, mal chegámos ao lugar da competição, um dos nossos dirigentes virou-se para o Anacleto Pinto e disse-lhe: «Põe-te a pau com este rapazinho, que ele pode ganhar-te! Põe-te fino com ele, pá!» O Anacleto era considerado o maior prodígio do atletismo e obviamente respondeu-lhe com um sorriso maroto… Não ganhei ao Anacleto que já estava no Benfica, mas podia ter-lhe dado luta que não dei. Fui terceiro e só não ganhei ao José Salvé-Rainha, atleta da CUF, porque me enganei no percurso por duas vezes, por duas vezes tive de voltar atrás para contornar a bandeirola da marcação.
À sensualidade de Lynn Rogers (apresentada como «nome fulgurante nos cartazes de Las Vegas»), o Casino do Estoril juntaria o «erotismo» (que para os puritanos era pior do que escândalo, era pecado e capital) das Doriss Girls do Moulin Rouges de Paris – e, para essas suas noites de espetáculo (em «friso de charme e elegância»), impusera «consumo mínimo de 60 escudos» e a regra do costume: «só para adultos» (e aí percebia-se por nos seus bailados haver seios nus). Carlos Lopes ainda não o poderia, pois, ver se quisesse e tivesse dinheiro para tanto. Dificilmente o teria a ganhar 22 escudos e 30 centavos por dia – e o que não tinha ainda era treinador de facto…
– Havia sempre alguém com mais conhecimentos a soprar-nos um lamiré, mas não mais do que isso… Ou seja, no fundo, o treino era treino de… cada um por si e deus por todos! Sobretudo para mim, treino era competição sempre: correr X tempo para ver quem chegava primeiro – a dar no osso, do princípio ao fim! E não: apesar desse meu brilharete, Moniz Pereira não correu a desafiar-me para o Sporting, logo lá, em Évora. Aliás, quem primeiro me tentou foi a Académica. Depois, o Benfica mandou o Anacleto Pinto a Viseu falar comigo. Após a prova de observação para o Crosse das Nações em Coimbra, nova prova de observação se fez em Lisboa – e, indo eu, então, treinar-me a Alvalade com o prof. Moniz Pereira deu-se a primeira abordagem do Sporting. O prof. Moniz Pereira era o selecionador nacional, mas não, o desafio não partiu dele, partiu do senhor Sá Viana, o responsável pelo atletismo no clube.
Mandou o José Lourenço à… merda e não parou mais de passar gente e mais gente
Sem que a Federação Internacional de Atletismo ainda o tivesse puxado à sua alçada, o Crosse das Nações já se considerava campeonato do mundo de corta-mato (e o que ainda não estava era aberto a mulheres, tal sucederia, apenas, na edição seguinte, levando à primeira de cinco vitórias da americana Doris Brown). Para palco dessa edição de 1966, escolheu-se Rabat (a 20 de março). Sem pasmo (antes pelo contrário) Moniz Pereira juntou para a prova de juniores Carlos Lopes a Anacleto Pinto, a José Salvé-Rainha e a José Lourenço:
– Na minha primeira vez a viajar de avião, fizemos escala em Madrid. Apesar de ele andar já a queixar-se de um mal qualquer no fígado, em Madrid o Anacleto comprou uns sapatos para utilizar em Rabat – a mim isso nem sequer me poderia passar pela cabeça, eu ainda mal tinha dinheiro para comer… A fartura não era muita, mas isso não: fome nunca passei, nem eu, nem os meus sete irmãos: a Conceição, a Cidália, o António, a Maria das Dores, a Ana Paula e o José António, todos eles mais novos do que eu. E só não eram oito porque, quando eu estava a caminho dos oito anos, me morreu uma das irmãs, a quarta de nós, era a Ana, tinha dois anos. À borda de casa, corria o Pavia e, julgando nós que ela queria ir ao rio dar banho a uma bonequinha de trapos, caiu à água. Foi o primeiro drama que vivi, andando, com o meu pai e a minha mãe, à procura dela, encontrámos o corpo preso a um açude…
Foi em alvoroço que se soube: que, da sua exposição em Londres, alguém levara, roubada, a Taça Jules Rimet (troféu para o campeonato do mundo de futebol que já tinha certa a presença de Portugal) e a Scotland Yard admitia que o ladrão já a «tivesse mandado fundir» – e, nesse dia, em Rabat, a Carlos Lopes logo se lhe insinuou o espírito (esse espírito que haveria de torná-lo, impressionante, no que se tornou):
— Lá, em Rabat, o que mais me espantou foi ver, desde a véspera, todos os outros a abafarem-se em cuidadinhos e exageros. Ou pior: a tremerem, a tremelicarem. O Anacleto, que todos julgavam que era um dos favoritos, quase que metia dó. Estava todo mijado. Eu não. Aliás, foi aí que descobri que, no atletismo, quando alguém tem medo, arranja logo qualquer coisinha… Medo eu não tinha, mas como experiência também não, o que arranjei foi o que me pareceu a melhor solução para atacar a corrida de sete quilómetros: juntar-me ao José Lourenço e deixar-me ir com ele. Assim foi. Contudo, de um momento para o outro, olhei para trás e… só vi meia dúzia de gatos pingados atrás de nós. Não me contive, perguntei-lhe: «Oh Zé, já viste onde estamos?» Ele respondeu-me num murmúrio… um «não sei quê…» – e, passando-me pela cabeça coisa má, disse de mim para mim: «Eu quero é que este gajo vá à merda!!!» Pus-me, então, a dar à perna, desatei a passar gente e mais gente. Apercebendo-me de que o Anacleto já tinha desistido, não parei de passar gente e mais gente. E, acabando em 25.º lugar, não tive dúvidas: se tivesse andado um bocado mais de início, teria ficado nos 10 primeiros, na pior das hipóteses nos 15.
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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