A data – 25 de novembro de 1975 – ficou a marcar a história como o (definitivo) regresso de Portugal à democracia parlamentar (e ocidental) e ao fim da sua ilusão comunista. Sendo, porém, já a 26 (de novembro de 1975) que o desfecho deu no que deu…
E ainda mais do que com Bruno de Carvalho,
o que o 25 de novembro tem a ver com José Carvalho com lança-granadas na mão
antes de ser estrela nos Jogos Olímpicos
De alvoroço em fogacho se viveram meses e dias anteriores. Por exemplo, a Vasco Gonçalves (ainda primeiro-ministro…) apanhara-se-lhe, no frenesim do devaneio: «Não podemos perder por via eleitoral aquilo que tanto tem custado ao povo e à revolução» – e logo surgira Álvaro Cunhal (o líder do PCP) a dar-lhe aconchego: «As eleições não têm nada ou têm muito pouco a ver com a dinâmica revolucionária, Portugal nunca terá uma democracia burguesa.»
Sem que o MFA cedesse à pressão, fizeram mesmo eleições, a 25 de abril de 1975 – as eleições para a Assembleia Constituinte. Entre os candidatos surgiram José Maria Pedroto (pelo PPD), Artur Jorge (pelo MDP/CDE) e António Simões (pelo CDS). Sem que nenhum deles conseguisse mandato para São Bento (António Simões consegui-lo-ia, um ano depois, nas primeiras Legislativas) – o PS colheu 37,87%, o PPD 26,39% e o CDS 7,61%.
Ao contrário do que sucedera em 1974, nas comemorações do 1.º de Maio, o PCP (que se ficara pelos 12,46% de votos) proibiu Mário Soares de discursar. Pedindo-se, então, ao FC Porto o Estádio das Antas, no comício que lá fez pela «democracia de verdade» aglomeraram-se mais de 50 mil pessoas – e, arrastadas mais de 100 mil para a manifestação na Fonte Luminosa, apesar de o COPCON ter levantado barragens à entrada de Lisboa, Costa Gomes (o Presidente da República que, na flexão à esquerda, se pusera no lugar de António de Spínola, general de cavalaria que fora grande figura no hipismo) percebeu o destino a mudar:
– O povo já não está com o MFA.
Não, não estava com esse MFA retorcido à esquerda mais radical e, por entre ação exortando à «defesa da revolução, custasse o que custasse», o PCP ainda ensinou militantes a fabricaram cocktails molotov – e, a 12 de setembro de 1975, apagou-se o gonçalvismo (na queda de Vasco Gonçalves de primeiro-ministro), sem que, porém, se desfizessem ou desenfarinhassem escarcéus e conspirações.
Tinham sido (no PREC) 452 dias quentes avassaladores – e com José Pinheiro de Azevedo (descendente de judeus de Viseu que, já oficial de marinha, se aventurara ao primeiro curso do Instituto Nacional de Educação Física – e, por essa altura, tinha um sobrinho neto chamado Bruno, o Bruno de Carvalho que haveria de tornar-se presidente do Sporting…) empossado Primeiro-ministro do IV Governo Provisório, o país continuou, pois, a arder…
Horas antes Mário Soares telefonara, impaciente, a Freitas do Amaral avisando-o:
– Está a correr rumor de que se prepara em Lisboa uma tomada de poder pelas forças afetas ao Partido Comunista…
e o que era certo e sabido era que, para 16 de novembro de 1975, se marcara «manifestação no Terreiro do Paço para dar resposta à altura à manif de apoio a Pinheiro de Azevedo».
Da Avenida da Liberdade largou, então, a «manifestação no Terreiro do Paço para dar resposta à altura à manif de apoio a Pinheiro de Azevedo» com betoneiras e tratores de reboque das zonas da Reforma Agrária. Chamando-lhe «manifestação unitária popular», desembocou no Terreiro do Paço e, na mensagem que para lá enviou (para ser lida por um soldado), Otelo Saraiva de Carvalho afirmou que o «Terreiro deixara de ser do Paço, passara a ser do Povo» – exortando, veemente, «trabalhadores e militares» a avançarem para a «revolução socialista». E, em fervor, gritou-se pelo «Camarada Vasco» (o Gonçalves, claro):
– Tu és a muralha de aço!
No RALIS, quartel sob comando de Carlos Fabião, soldados foram a desfile marchando de punho fechado e bradando:
– Juramos estar sempre ao lado do Povo, ao serviço da classe operária, contra o fascismo, contra o imperialismo, pela vitória da Revolução Socialista.
e, à «manifestação unitária popular» (e ao mais que se passara antes – por exemplo, trabalhadores da construção civil cercarem-no em São Bento…) Pinheiro de Azevedo respondeu com ato insólito, como esse que se desatou da reunião do Conselho de Ministros pela alta madrugada de 20 de novembro, atirando, aos repórteres que o aguardavam, a afirmação (acirrada):
– Fui sequestrado duas vezes, já chega! Não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá!
Já tinham sido desviadas espingardas automáticas G3 do paiol de Beirolas – e murmurava-se que Otelo o afiançara:
– Estão em boas mãos, nas mãos do povo!
e, nesse primeiro dia do governo de Pinheiro de Azevedo em greve, o Conselho da Revolução decidiu substituir Otelo Saraiva de Carvalho por Vasco Lourenço (que haveria de chegar ao Conselho Leonino do Sporting e até, depois, ser aventado para candidato a seu presidente) no comando da Região Militar de Lisboa. E foi então que, considerando que Otelo e Fabião, o Ralis e a Polícia Militar, eram entraves à «normalização da crise», Jaime Neves revelou, atroante:
– Os Comandos querem pôr isto na ordem!
Da adolescência de Jaime Neves em Vila Real haveria de contar Rui de Azevedo Teixeira na biografia que lhe fez:
«Além das leituras e do sexo virtual, há o cinema e o futebol. Quanto ao futebol, Jaime e os amigos jogam-no num campo junto ao cemitério. A bola com que jogam é feita de jornais amassados metidos dentro de meias. São bolas que alugam a uma moça chamada Mariana, que vive na Vila Velha, e que, além de fina comerciante que aliga bolas, é dura desportista. Não só obriga os rapazes a incluí-la numa das equipas como joga descalça enquanto eles jogam quase todos de alpergatas. Além disso, Mariana, um mulherão que virá a ser elemento do Partido Comunista, bate-lhes. Na arte do pontapé e da cabeçada, Jaime é um cabeça de área, como dizem os brasileiros. É o organizador de jogo, o motor da equipa. É no futebol que começa a aperceber-se vagamente de certas características que o levarão a um invulgar condutor de homens…»
Tentado a não fazê-lo, Vasco Lourenço acabou por aceitar o comando da Região Militar de Lisboa – e, chegando-se a 24 de novembro, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Vasco Lourenço e Jaime Neves foram a Belém dar conta a Costa Gomes da sua intenção de «repor Portugal na rota da democracia». Fora deixaram, insinuantes, quatro chaimites estacionados – e Jaime Neves desvelá-lo-ia:
– Se não me segurassem eu matava-o. Atirei-me a ele, agarrei-lhe o pescoço, sim até o matava… Porque ele, o Costa Gomes, que era o Presidente da República, o Chefe do Estado Maior, não queria assumir nada, a responsabilidade das operações militares, só dizia que os outros eram coitadinhos e por aí adiante. Não, não estava hesitante, estava cheio de medo, cheio de medo…
Morais e Silva, Chefe do Estado Maior da Força Aérea, mandara passar à disponibilidade 1000 paraquedistas da Base de Tancos – e na manhã de 25 de novembro eles ocuparam o Comando da Região Aérea de Monsanto e seis outras bases a Norte, reafirmando-se, em furor, «fiéis a Otelo e ao Copcon, à revolução socialista».
Companheiro de quarto de Henrique Calisto (que já professor de Educação Física jogava futebol no Leixões) no quartel da Polícia Militar (um dos baluartes do COPCON) era José Carvalho que estava, então, a preparar-se para os Jogos Olímpicos de Montreal de onde haveria de sair em brilharete, perdendo por pouco, por muito pouco, a medalha de bronze nos 400 metros barreiras:
– Três dias antes do 25 de novembro tinha recebido dispensa de serviço de comandante do 1.º Esquadrão de Instrução de Cavalaria, o Henrique Calisto era comandante do 3.º Esquadrão. Como deixara o comando ao capitão Ferreira da Silva, ao ouvir na rádio informação de que os militares deviam regressar todos aos quartéis, regressei… Ainda fui destacado para missão no RALIS, ir ao RALIS saber da sua posição, fui eu e o Calisto num unimogue, bem armados. O Calisto com uma autometralhadora, eu com um lança-granadas antitanque. Ao voltarmos fez-se uma reunião de oficiais com o Campos Andrada, o primeiro comandante, e com o Mário Tomé, o segundo comandante. Por essa altura, a RTP já estava a emitir do Porto – e perante o impasse na nossa reunião, eu decidi voltar para o meu quarto no Centro de Estágio da Cruz Quebrada. Ao descer, à noite pela Calçada da Ajuda, ainda me apercebi de elétricos em jeito de barricada – e no outro dia de manhã, antes de ir para o treino, ouvi na rádio as notícias do ataque à PM, das mortes…
Estivesse onde estivesse, Jaime Neves tinha o Benfica no coração (nunca deixou de o ter…) – e a sua saga nos Comandos começou sob o signo de Eusébio, por entre peripécia que Rui Azevedo Teixeira também contou:
«No quartel de Queluz, o seu comandante é dominado pela admiração que tem por Eusébio, que ali cumpre o Serviço Militar Obrigatório. Eusébio faz o que quer no quartel. Entra tarde, almoça bem, com vagar, sai cedo. O comandante permite-lhe tudo. Aliás, quase todo o quartel está mais interessado em ver Eusébio «a dar uns chutos com o pontapé canhão» do que a cumprir as obrigações. A idolatria pelo jogador chega ao ponto de se fazerem bichas só para «mirar as chuteiras do Pantera Negra». Entretanto, os homens que vão para o Centro de Instrução dos Comandos já deviam ter recebido cada um 500 escudos de subsídio de fardamento, mas o dinheiro não aparece. É então que os futuros instruendos do CIC e o pessoal do Regimento de Artilharia assistem a um episódio protagonizado por um capitão Gonçalves das Neves vulcânico. Consiste em duas cenas de berros nunca antes vistas no pacato quartel. Primeiro, o capitão dirige-se ao primeiro sargento da secretaria. Depois, sobe ao comandante do Regimento. Aos dois, com virilidade verbal, grita: Onde está o dinheiro, caralho? Mas isto trata-se da guerra ou de apoiar o Eusébio? Os futuros instruendos do CIC e futuros subordinados de Neves percebem que têm ali um chefe a sério. Tanto mais que ficam a saber que Neves não só é um benfiquista como um eusebista. No dia seguinte, o dinheiro emerge das desleixadas gavetas burocráticas e todos ficam equipados…»
Foi, pois, com esse espírito que já na madrugada de 25 para 26 de novembro, Jaime Neves (que acabara de ser promovido a tenente-coronel) subiu de chaimite a Calçada da Ajuda, arrastando força para vergar a Polícia Militar e o Regimento de Cavalaria 7. Encontrou, contudo, espalhadas em seu redor, milícias populares armadas de metralhadoras, nalguns casos. A um repórter da RTP, um soldado da PM revelou que o seu regimento distribuíra armas a civis durante a noite…
Populares conotados com os partidos da extrema-esquerda cavaram trincheiras junto às instalações da PM – e, numa das três companhias que Jaime Neves levara para o ataque estava o tenente José Eduardo Coimbra. Ao erguer-se para fora do seu tanque recebeu tiro em cheio, por cima do crachá – e morreu a caminho do Hospital Militar. Sugerindo-se que a bala que matara Coimbra fora disparada por popular escondido no telhado de um andar da Calçada da Ajuda, Henrique Calisto que estava lá, dentro, no quartel da PM, garantiria (muitos anos depois, em A BOLA) que não, que o disparo foi de um dos seus instruendos.
Com o furriel Joaquim dos Santos Pires abatido por fogo de metralhadora do Regimento de Cavalaria 7, o cerco ao quartel da Polícia Militar fez-se com os comandos exclamando, em ira: «Vamos vingá-los, mataram-nos dois, mataremos 200 pelo menos!» Jaime Neves pediu-lhe calma e foi essa sua voz de comando que evitou uma barbárie, é o que se diz, ainda hoje.
Andando-se já pelas 7:20 horas do dia 26 de novembro, os majores Mário Tomé e Cuco Rosa foram convocados para se apresentarem ao Presidente da República – mas um plenário de militares revolucionários da PM determinou que só iriam se Costa Gomes explicasse a razão da convocação. Menos de uma hora depois, Jaime Neves atirou o seu chaimite contra um dos portões, derrubou-o e tomou o quartel do Regimento da Polícia Militar sem um tiro. Ordenando: «Tudo na parada, já!» – perguntou a Mário Tomé (que haveria de ser deputado e líder da UDP) pelo seu comandante e, desconcertante, foi a resposta que colheu: «A última vez que o vi estava debaixo da secretária! O cheiro do perigo tem resultados imprevisíveis. Pode até transformar gigantes em pigmeus…»
Dispersaram os soldados após a rendição, os oficiais da PM ficaram sob prisão durante três dias no próprio quartel. José Carvalho não, que lá não estava quando do ataque, mas Henrique Calisto sim:
– Ao fim desses três dias detido, fui ouvido na Região Militar, mandaram-me para casa. Não, não fui logo desmobilizado, três meses depois ainda estive em Elvas, mas só 15 dias. E aí sim, é que foi o fim, deixei a tropa, fui dar aulas para Santo Tirso. Jogava no Leixões, no Leixões continuei a jogar, a treinador só passaria cinco anos depois, em 1980.
Um dos dois comandos mortos, o José Eduardo Coimbra, era grande esperança do basquetebol nacional. Miliciano na Amadora, jogava no BPM (equipa do banco de Afonso Pinto de Magalhães, o presidente do FC Porto). No Porto se fez o seu funeral – e que quase se transformou em tragédia se contou: que eram aos milhares as pessoas a atravessarem a ponte D. Luís para o último adeus e o que, por isso, a ponte tremeu, chegou a abanar, achou-se que caía.
Logo se soube que Jaime Neves, emotivo, decidira guardar para si a Kalashnikov que o tenente Coimbra usara pela última vez – e na sequência da sua ação, a 28 de novembro, Pinheiro de Azevedo anunciou que o seu VI Governo Provisório voltava à normalidade de funções – e Mário Soares, que se refugiara no Porto, regressou a Lisboa.
O novo homem forte do regime não passou a ser Jaime Neves, passou a ser Ramalho Eanes… – e, em 1981, com ele no segundo mandato de Presidente da República, Jaime Neves passou à reserva e oi trabalhar para Jorge de Brito (que o COPCON de Otelo tivera preso, em Caxias, durante 18 dias por ser «capitalista…» – e ainda antes da revolução de 25 de abril de 1974 pagara do seu próprio bolso a pista de tartan que o Benfica tinha do lado de fora do Estádio da Luz…) como seu gestor de propriedades.
Em África, Jaime Neves comandara a companhia 2045, uma das últimas forças especiais a deixar a guerra colonial – e nela se inspirou para, com mais seis comandos, fundar uma empresa de segurança: 2045, o seu último projeto de vida. Até ao último dia manteve quente o fervor pelo Benfica – não perdia um jogo, fosse em Portugal, fosse no estrangeiro, às vezes alugava camionetas para levar familiares e amigos a vê-lo…
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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