Quatro versos apenas bastaram para que, no génio da sua poesia, Manuel Alegre (filho de Francisco Duarte que, por finais dos anos 20, pusera o recorde de Portugal do salto com vara em 3,30 metros) revelasse o espírito (e não só…) que atirou Carlos Lopes à imortalidade… (2).
Mais do que ser primeiro
Herói é quem
Sabe dar-se inteiro
E dentro de si mesmo ir mais além
(Continuação)
Dos baldes de massa ao lombo à pista no adro da capela da aldeia
Escrevendo Aquilino Ribeiro em «Quando os Lobos Uivam», o censor a quem coube a análise despachou-a assim: «São desnecessárias citações porque basta folhear o livro e encontra-se logo material censurável em profusão.»
Como o escritor (que não era de longe de Viseu) até já tinha sido indicado para Nobel, apesar de levado a tribunal (arriscando pena de oito anos de prisão), para evitar «escândalos nacionais e internacionais», com cautelas pouco habituais a Comissão de Censura determinou apenas: «1) Não autorizar a sua reedição; 2) Não permitir qualquer crítica na Imprensa; 3) Apreender apenas os poucos exemplares que possivelmente existam em livraria.»
O ataque (mesmo não sendo o pior que podia) tinha uma razão sem razão: «Quando os Lobos Uivam» era um empolgante grito contra a ditadura em defesa dos terrenos baldios da (ficcionada) Serra dos Milhafres (que bem poderiam ser baldios em torno de Viseu) e tinha no velho Teotónio Louvadeus a imagem do beirão com a força do granito, por entre as gentes daqueles lugares perdidos e escondidos nas lapas da serrania – essa «força do granito» que no Carlos Lopes se começou a ver logo que saiu aprovado (e sem grandes complicações) do exame da quarta classe na Escola da Avenida (em Viseu). E, não demoraria muito, aliás, a ver-se, de igual modo, o Carlos a descobrir o seu destino por entre o que outros julgaram que fossem lobos a uivarem…
– Lá tive, pois, de largar a escola, ir trabalhar. Trabalhar no duro também como o meu pai – para ajudante de pedreiro –, a acarretar massa para primeiros e segundos andares, ao lombo, a cinco escudos ao dia.
Tinha 12 anos (quando teve de ir trabalhar) – e, poucos meses após, surgiu-lhe, enleante (e ainda não muito arrebatante) o primeiro sinal de sortilégio (a que, porém, só daria prossecução depois…):
– A rapaziada lá da aldeia fez uma pista no adro da capela para simularmos unas provas de atletismo. Nada como agora que lá tem jardim e empedrado. Nessa altura era tudo apenas em terra batida – e era o largo dos sonhos de todos nós, devíamos ser para aí uns 22. Por lá se jogava à bola, por lá se faziam outras coisas que calhassem e, certa vez, alguém se lembrou de lá fazer pista de atletismo, dando-lhe 200 metros mais ou menos a olho. Como eu já tinha afeição pelas distâncias maiores, aventurei-me à prova mais longa. Acho que seis quilómetros. O resto da malta andava pelos 18 anos ou mais, eu tinha 13 e, mesmo sendo meio fio de gente, fiquei em terceiro lugar. Isso das corridas já me estava na massa do sangue… Sim, na massa do sangue porque o meu tio Manuel, irmão do meu pai, tinha sido campeão regional de fundo. Corria no Lusitano de Vildemoinhos, chegou a ir a Lisboa aos Campeonatos Nacionais de 30 quilómetros. Sem nunca se treinar, o meu tio Manuel fazia, a nível nacional, bons resultados, quinto, sextos – nesses seus tempos de glória andava eu pelos seis anos. Ou seja, o atletismo já me estava nos genes, já estava nos genes dos Lopes. De tal forma que, depois, a minha prima Maria João Lopes se tornaria grande figura do atletismo e o meu primo Carlos, o Carlos Lopes dos cegos, chegaria a campeão paralímpico. E do meu filho Nuno, a gente sabe também o prodígio que foi. Só que, para mim, nessa altura, a paixão, paixão cada vez mais quente, era o futebol, era ser jogador de futebol que eu queria ser porque já era o futebol que dava «guito», a gente bem o sabia. E juro que tinha certa habilidade. Não tinha corpo tinha de arranjar as minhas armas… quem não tem cão, caça com gato – e a minha arma, para além de correr sem nunca me cansar, era ser um bocadinho sarrafeiro!
De marçano na mercearia à comparação com os prémios no Sporting (já sem o Seminário)
Quando Carlos Lopes saltitou da serventia a pedreiros para marçano numa mercearia ao pé do hospital de Viseu a receber 25 escudos por mês – 1000 escudos de imposto de justiça e pagamento de 10 contos de indemnização, para além de um ano de prisão, teve de pagar Adelino de Almeida por atingir Francisco Gonçalves com garrafa (que o «feriu gravemente») e esse ser o tempo em que o respeitinho é muito bonito era mais do que um chavão tão-só…
— …25 escudos ainda era uma exploração, mas já muito mais suave do que amargar com os baldes de cimento às costas. E 50 escudos mensais passei a receber quando me empreguei na Ourivesaria Estrela. Punha lentes em óculos, disso não gostava. O patrão até me achou com jeito para o trabalho de ourives e para relojoeiro, mas como nunca mais me passava nem para uma coisa, nem para a outra, fui-me embora, fui para serralheiro civil na Viseu Industrial, onde o meu pai também trabalhava. Só aos 16 anos me aceitaram – e aí o meu primeiro ordenado já foi de 6 escudos e 30 centavos ao dia. Dois anos depois, quando já tinha o atletismo a mudar-me a vida, subiu para 22 escudos e 30 centavos, nem sequer dos centavos me esqueci…
No verão de 1963, alvoroço como nunca se vira, vira-se em Monte Gordo. Ingrid Bergman, a estrela de Casablanca, lançara-se a férias no Algarve e não perdeu tempo a descer do Hotel Vasco da Gama à praia em provocante biquíni. Sobre si logo se precipitaram olhares gulosos de pescadores e demais veraneantes – e o que também não tardou foi o cabo do mar abeirar-se da atriz, com o caderninho de multas na mão. Mirou-a e remirou-a, logo escrevendo no bloco: «Indecência» Ordenou-lhe que a acompanhasse à receção do hotel para que num melhor inglês lhe explicassem porque tivera de a multar – e, cioso da sua obrigação, parece que ainda de si se soltou o sussurro:
– … e fiquei longe do valor máximo, a senhora só terá de pagar 500 escudos.
e disse quem viu e o contou: «Não era o preço da multa que mais importava àquela mulher de 48 anos e ainda de uma deslumbrante beleza. Era o vexame de ser multada por usar um biquíni. E, nesse aspeto, a atriz sentiu-se ofendida sobretudo pelo atraso de mentalidade e pela falta de liberdade vivida no país.»
Pois, a 500 escudos não chegava o ganho mensal de Carlos Lopes na serralharia – e 4000 escudos por mês recebiam os jogadores titulares do Sporting que conquistaram a Taça das Taças (de 1964), no cantinho do Morais. 4000 escudos por mês fora as luvas e fora os prémios, nos prémios vitória que fosse em Alvalade valia 750 escudos, se fosse fora de casa valia 1250. E, da ilusão a que o Carlos se aconchegara se foi desfazendo, vagaroso:
— Não, não se pode dizer que eu crescera a querer ser o Seminário do Sporting. O que eu queria era jogar futebol – e pensava, iludido, que era o Seminário. Isso do Seminário fora por aquilo que eu ouvia nos relatos e, claro, lá tentei ir para o futebol no Lusitano de Vildemoinhos. E o que se disse: que o meu pai não me deixava jogar à bola para eu não estragar os sapatos é daquelas balelas que se criaram nas conversas da treta… Jogar, jogava, era muito pequenino e franzino, tinha um frenesim do caraças, a bola desaparecia comigo, a malta achava que, por isso, eu não tinha grande jeito, mas eu até tinha…
No que deu o uivo do vento na zona dos lobos, depois da festa da aldeia (e do medo perdido a entregar sapatos…)
E… 30 contos por combate ganhara nos seus tempos áureos no boxe (pela segunda metade dos anos 50), o Belarmino Fragoso. Andando, então, fulgurante por Espanha, por França, por Marrocos e pela África do Sul – quando gente aos magotes se precipitava para si pedindo-lhe autógrafos, murmurava-lhes, tristonho, no bordão a cambalear: «Não posso… Mão aleijada.» Não, não era a mão aleijada que ele tinha – era analfabeto, não sabia escrever.
Com Carlos Lopes ainda sem descobrir o seu destino, Fernando Lopes conheceu Belarmino numa cervejaria em frente ao Parque Mayer e, encantado com a sua história, fez «Belarmino» – o Belarmino que chegou aos cinemas algures por 1964, mostrando-o de regresso à miséria em que nascera, engraxando sapatos, assando frangos na Feira Popular, enfarinhado na nostalgia da glória perdida. O filme era mais do que a metáfora do ídolo em queda, era sobretudo a metáfora do que Lisboa era (e Portugal também…) nas suas luzes, nas suas sombras.
E, meses depois do filme ser «murro no estômago» de gente que viu, no retorno de uma festa de aldeia em Abravezes (a menos de quatro quilómetros de Vildemoinhos) por outras sombras, as sombras de uma madrugada a abrir-se, achou, enfim, Carlos Lopes o caminho para a eternidade (sem queda, queda como a do Belarmino, sobretudo por ele, o Carlos, ter a personalidade que tinha…):
– Quando eu andava aí pelos meus sete anos já tinha de ir entregar pelas redondezas os sapatos que o meu pai concertava ou fazia, no intervalo da oficina. Ia por campos e pinhais, às vezes à noitinha – e foi assim que eu comecei a perder o medo, a deixar de ter medo do que fosse. Anos depois, vindo com grupo da aldeia das festas de Abravezes, dizia-se ser, por ali, zona de lobos e, ante a escuridão dos pinheiros, um uivo do vento talvez pôs a malta em pânico. Parecendo que vinha alguém atrás de nós, houve quem desatasse a correr que nem desalmado – eu corri também e, sem que tivesse sido o medo a levar-me, fui o primeiro a chegar à aldeia. Havia três rapazes que vendiam jornais e que já tinham a mania das corridas a pé, um deles sugeriu a criação de uma equipa de atletismo no Lusitano…
Fazendo, nesse ano de 1965, da sua Praça da Canção uma bandeira desfraldada e um rastilho de resistência e luta pela liberdade, Manuel Alegre também espalhou por lá imagens de uma pátria parada/ à beira de um rio triste. Vergílio Ferreira escreveu «Alegria Breve» – e, ao Carlos Lopes, o destino (que não haveria de ser de alegria breve, apesar de sacrifícios e penares…) abriu-se com a falsificação de uma assinatura (brincalhão, o Carlos chama-lhe, porém, outra coisa…):
– A minha mãe achava que sendo eu tão magrinho, pondo-me a correr me queriam matar, me punham tísico. Aliás, nunca quis ver corrida minha, nem sequer na televisão, depois o que fazia era rezar, rezar… Nessa altura era preciso autorização dos pais para nos federarmos e do meu pai eu não sabia se ele queria ou não, se ele deixava ou não. Desconfiando de que fosse pela ideia da minha mãe, sem dizer nada a ninguém, agarrei na ficha e… não, não lhe falsifiquei nada a assinatura – só tive de imitá-la, assinar como se fosse ele, não custando nada porque o fazia de forma perfeita…
Proibindo o Benfica (já bicampeão europeu) de ir jogar à União Soviética, a PIDE fez mais: proibiu que, nas suas digressões pela Europa de Leste, dessem autógrafos (para que «comunistas não os usassem em falsa propaganda contra a Nação…» – e foi em suplício que Carlos Lopes largou do primeiro treino a que se aventurou:
– Depois de tudo oficializado no Lusitano, decidiu-se que devíamos fazer um treino de 20 quilómetros. Uma maluquice! Arrefeci, fiquei que mal me podia mexer. Andei três dias agarrado às paredes, sofrendo, sofrendo para chegar ao emprego. A certa altura até já me passava pela carola não correr mais na vida. E àquela que devia ser a primeira prova pelo clube: o corta-mato de abertura da Associação de Viseu em Lamego, não a fiz porque, na véspera, queimei um pé. Tinha o tornozelo inchado, queimei-me com um saco de água quente…
Depois da «maluquice» dos 20 quilómetros, o pai foi vê-los às escondidas
Sem que se repetisse a «maluquice» dos 20 quilómetros, continuaram, de improviso, os treinos ao deus-dará para o Carlos Lopes:
– A malta juntava-se depois dos empregos e dos jantares e punha-se a correr por ali. Treinar era… correr, correr, correr – e sempre de prego a fundo. Houve até, por várias vezes, quem passasse mal por causa do estômago cheio, a digestão por fazer.
Paula Rego já o confessara: «Pinto para dar uma face ao medo.» Em velados maus comentários ao salazarismo e ao seu modelo de sociedade também, assim pintou «Manifesto Por uma Causa Perdida» – e foi sem medo a pintar-se em si que, na noite de São Silvestre de 1965, Carlos Lopes sumiu, sorrateiro, de casa, julgando que, por lá, ninguém cogitasse que fosse fazer o que fez (façanhoso):
— Foi a primeira corrida da minha vida, essa São Silvestre de Viseu. Fui segundo, regressei a casa com a medalha ao peito, todo satisfeito, e em vez do sermão e da missa cantada que eu julgava que teria à minha espera – o que encontrei foi sorrisos e felicidade. O meu pai até tinha ido ver-me às escondidas, já sabia, pois, de tudo o que acontecera…
Vencedor entre os «filiados» foi Jorge Ferreira (da Juventude de Abraveses), a vitória nos «populares» coube a Adelino Rodrigues (do Drizes):
– Ao Adelino Rodrigues chamavam-lhe o… Ferro e dele se dizia que era o grande favorito. Com o Ferro sempre a puxar, por metade da corrida achei que, para mim, ia o caso mal parado, que já tinha dado o estoiro, um grande estoiro. Ainda pensei: Mas o que é que eu ando aqui a fazer? – e, cerrando os dentes, para aí a dois quilómetros do fim, vi-me na frente, com o Ferro e o Jorge Ferreira – e, acabando tudo como acabou, nessa noite de São Silvestre não foi só em minha casa que houve uma festa do caneco, festa do caneco houve em toda a aldeia por causa desse meu segundo lugar.
(Continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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