Foi com Otto Glória a selecionador que, a 11 de outubro de 1982, Portugal ganhou pela primeira vez um jogo oficial à Polónia. Acabou 2-1 (com golos de Nené e Fernando Gomes) – e na primeira página de A BOLA o título da crónica de Alfredo Farinha era: «A tremenda injustiça de ganhar só por um golo.» Não, não foi só, nessa tarde, na Luz, andaram mosquitos por cordas (e antes vários espantos se viveram…)
O que ainda tinha ficado por contra, a propósito dos 5-1…
Na primeira vez que Portugal ganhou à Polónia, jogadores do FC Porto só chegaram à seleção pela madrugada
e em vez de trocar a camisola o jogador polaco Boniek cuspiu e Otto Glória jurou que não quis bater no árbitro…
Oito meses demorara – o processo de substituição de Juca, falara-se em Josef Venglos e João Alves alvitrara-o: «Nenhum grande treinador estrangeiro virá para Portugal, o presidente da FPF ainda recentemente anunciou que a federação pagará bastante menos que o… Guimarães. Se vier algum, ou é refugo ou é homem em final de carreira.»
Nesse impasse se estava quando, Romão Martins encontrando-se no Congresso da FIFA com Otto Glória, o Otto Glória que levara Portugal ao terceiro lugar no Mundial de 66 como treinador de um «selecionador civil», o Manuel da Luz Afonso, lhe atirou furtivo o desafio – e recebeu como resposta: «Sim, eu vou!»
(Para a sua equipa técnica escolheu Fernando Cabrita, José Augusto, António Morais e Toni – e Radisic, preparador físico do Sporting.)
Chalana e a… «porrada»!
Já se sabia que, nessa tarde de 10 de outubro de 1982, Chalana não podia jogar – e, em A Bola, queixava-se: «Não, não sou um lesionado crónico, tenho é pouco físico para tanta porrada! Se a FPF utilizasse a mão dura como a UEFA, o futebolista português talvez começasse a pensar mais na bola do que no homem. E, depois, poderem-se cumprir castigos nas reservas é ainda mais um autêntico convite à violência.»
O Portugal-Polónia marcou-se para o Estádio Nacional. Ao primeiro treino, viveu-se situação insólita. Como se estava a mudar o tartan da pista de atletismo, os técnicos ingleses encarregados da obra, avisaram que, sim, a seleção poderia treinar no relvado, mas não podia deixar que a bola fosse para a pista: «… para não se estragarem as marcações!». O que deixou Otto Glória descabelado: «Como é que eu vou fazer treino sem a bola cair na pista? E este campo é um museu, há jogadores na seleção que nunca pisaram a sua relva! Vamos jogar num campo que não é nosso, em que conhecemos a relva tão bem como os polacos? Não, não pode, não! Ou querem transformar este jogo, num jogo em campo neutro?»
A FPF entrou, então, em negociações com Fernando Martins – e o presidente do Benfica disse que sim, que o Portugal-Polónia se podia fazer na Luz, ficando o clube com 10% da receita de bilheteira (e assim arrecadaria 2100 contos).
A noite mal dormida…
Por causa de greve na CP, os convocados do FC Porto: Eurico, Gomes, Frasco, Inácio e Costa entraram na concentração no Alfa, o hotel de Fernando Martins, à uma da madrugada, a viagem tiveram de fazê-la, noite dentro, em automóveis próprios – e, no treino seguinte, tendo Otto Glória percebido apatia neles, António Morais, o adjunto de Pedroto, explicou-lhe: «Os meus conheço-os bem, os meus jogadores têm de dormir pelo menos 12 horas e, desta vez, não os deixaram…»
Não, Eurico não jogou ao lado de Humberto Coelho – quem jogou foi Bastos Lopes. Logo largou em rodopio rumor – que Fernando Cabrita desfez, de uma penada: «Dizem que tive uma divergência com Eurico? Não admito a quem quer que seja que diga isso. São análises deturpadas que em vésperas de um jogo importante só desestabilizam e isso é que eu mais lamento…»
Fez-se a equipa assim: Bento (Benfica); Pietra (Benfica), Humberto (Benfica), Bastos Lopes (Benfica) e Inácio (FC Porto; Veloso (Benfica), Carlos Manuel (Benfica), João Alves (Benfica) e António Oliveira (Sporting); Nené (Benfica) e Fernando Gomes (FC Porto).
Aos 35 minutos, queixando-se de dores nas costas, cedeu o seu lugar a Frasco (FC Porto). Depois, foi-se percebendo que Oliveira também em sofrimento: «ressenti-me da lesão anterior» e foi à liça o José Alberto Costa (FC Porto). Assim, suplentes por utilizar foram o Damas (portimonense), o Eurico (FC Porto) e o Lito (Sporting).
Bento e o golo ilegal
Portugal venceu por por 2-1. O primeiro foi de Nené (em voo de água, a fechar centro de Oliveira) num fogacho: «Sim, imporante para que Portugal arrancasse a exibição que arrancou, um golo que ajudou ao brilho dos restantes 88 minutos». Do seu golo, o segundo (com a bola a tocar ainda no corpo de Kazimierski) afastou Fernando Gomes todas as sombras: «Não acho que tenha sido um golo feliz foi apenas mais um golo». O da Polónia foi no último minuto, em A Bola descreveu-se assim: «O árbitro permitiu que, não obstante encontrarem-se dois jogadores portugueses caídos na sua grande área e sem atender à enorme confusão que reinava nessa zona, fosse efetuada a marcação de um pontapé de canto. Nervoso, desatento, preocupado com tudo menos com o canto, Bento não efetuou a interceção e, de cabeça, Krul fez o golo…»
Bem mais ao ataque foi a defesa de Bento: «Qual quê? Ilegalíssimo, o golo! Fui agarrado e fizeram-me obstrução, não me deixando ir à bola. O árbitro, ali a dois passos, é que lhes fabricou o golo.»
Fernando Cabrita foi pelo mesmo toque: «Sim, após a marcação do corner, Bento foi carregado em falta – e isso buliu com o estado emocional de Otto Glória, que sim, tinha razão, toda a razão nos seus protestos…»
A cuspir no fim
Mal o jogo terminou. Otto Glória correu para o árbitro, o austríaco Franz Woehrer. Na primeira página de A BOLA vê-se foto de Nuno Ferrari com Fernando Cabrita e Ribeiro de Magalhães a tentarem travá-lo – e Boniek a olhá-lo, esfíngico. A caminho dos balneários, queixou-se o selecionador a Vítor Hugo, repórter de A Bola: «Incrível, o árbitro foi um cafajeste permitindo que o moleque risse em nossa casa. Fiquei aborrecido com o homem. Não se faz. Dei bronca nele, um sem vergonha. E os polacos são maus perdedores. O Boniek, por exemplo, tem tanto de bom jogador como de mau perdedor. No final, houve jogadores que cuspiram nos nossos quando da troca das camisolas…»
Na edição seguinte de A BOLA, Otto Glória deu grande entrevista a Vitor Serpa, terminou-a assim: «Já li em qualquer lado que eu tentei chegar a mão ao árbitro. Como bater no árbitro? É verdade que o cara nos prejudicou, mas com tantos anos que já levo de futebol, ia, agora, bater num árbitro? Então tinha de andar a bater nos árbitros todos os dias… Não, não foi nada disso. O que aconteceu foi que, no final do jogo, quando eu vi um jogador português a querer trocar a camisola com um polaco, este, em resposta, cuspiu-lhe. Fiquei muito revoltado com isso e essa revolta me fez entrar no campo a gritar. O cara, então, voltou-se para mim… e… e não teve nada a ver com o árbitro, pois…»
Otto não o disse, não quis dizer quem foi esse jogador – mas sim: fora Boniek que o levara, agreste, à escaramuça.
«Talento de fora de série substituído pelo futebol de um arruaceiro…»
Filho de um dos primeiros grandes jogadores de futebol da Polónia, Zbigniew Boniek foi muito, muito maior do que o pai. O seu primeiro clube foi o da cidade onde nascera (em março de 1956): o Zawisza Bydgoszcz. Aos 20 anos, desafiaram-no para o Widzew Łódź – para o libertar o Zawisza pediu 400 000 złoty. Como o Widzew não tinha tanto, fez-se um acordo: os seus outros jogadores emprestaram ao clube a verba em falta.
Meses depois, Boniek já estava na seleção, mas ainda só como suplente: foi, aliás, assim, que passou pelo Porto, na noite do vendaval de outubro de 1976: «Chovia tanto, tanto, que nem se via a bola» e ganhando nas Antas por 2-0 a Polónia ficou com caminho escancarado para o Mundial de 78 onde ele começou a dar nas vistas (e pelo caminho fez do Widzew Lódz campeão da Polónia). A sua explosão deu-se, porém, quatro anos depois, no Mundial de Espanha, sobretudo através do hat-trick nos 3-0 à Bélgica de Jean-Marie Pfaff que foi o rastilho da aventura que terminou com a Polónia em terceiro lugar.
A contestação ao regime do general Jaruzelski percebia-se cada vez mais espicaçada e já não só na Gdansk de Lech Walesa em redor dos seus estaleiros – e os comunistas, tentando salvar a pele, foram abrindo uma ou outra frecha à sua ditadura, razão porque a Juventus conseguiu o que, antes, só conseguiria se Boniek já tivesse mais de 30 anos: ir buscá-lo para Turim, pagando por ele 1,8 milhões de dólares.
Foi de lá, de Turim, que partiu só a caminho de Lisboa para jogo contra de Portugal. Como os restantes polacos só chegavam no dia seguinte, Boniek saiu do controlo de fronteiras do Aeroporto da Portela muito discreto a caminho de um táxi que o levasse para Carcavelos, para o Hotel Praia Mar. Rebelo Carvalheira, repórter de «A BOLA», descobriu-o e ele contou-lhe que já passeara pela Baixa de Lisboa, lanchara numa pastelaria dos Restauradores e mais: «Também fiz compras, muitas compras no Rossio. Por exemplo, uma boneca madeirense para a minha mulher e uma pescadora da Nazaré para a minha filha. Se conheço alguns jogadores portugueses? Claro! José Augusto, Eusébio, Germano, Coluna. Sim, é verdade não falei dos de agora, mas Portugal tem sempre bons jogadores, por isso não estou a dizer que vamos ganhar, que já ganhámos…»
Horas depois, chegaram de Varsóvia os companheiros. Rebelo Carvalheira também foi ao seu encontro ao aeroporto – e alguém lhe afirmou: «Está a ver aquele rapagão ali?! Ainda é o bom vivant da seleção, mas vai ser muito mais do que isso, talvez já contra Portugal…»
O rapagão chamava-se Josef Mlynarczyk e ainda não sabia se tiraria ou não a titularidade na baliza a Kacek Kazimieryy. Foi, gingão, o último a entrar no autocarro, afirmando, pelo caminho: «Portugal tem jogadores muito perigosos, que quando têm a bola nunca se sabe o que vão fazer. Mas, deixe-me ir, que estamos todos muito cansados, a precisar de ir dormir…». (Suplente voltou a ser, como da vez anterior em que viera a Alvalade – depois de ter cumprido quase um ano de castigo «por violar a disciplina da seleção»).
Aurélio Márcio, na análise um a um à Polónia, não deixou de mostrar o outro lado da estrela que a Luz empalidecera: «Boniek, o talento de um fora de série substituído pelo futebol de um arruaceiro e pela má educação de um desordeiro…»
Nené levantou-lhe o véu: «Os polacos só nos foram superiores na rudeza com que atuaram. E olhe que podia dizer pior do que rudeza.» Bento deu-lhe ainda mais clareza: «Portugal realizou uma primeira parte diabólica – e talvez por isso os polacos se tenham tornado tão violentos.» A Augusto Inácio apanhou-se-lhe: «Podiam ter sido goleados, foram salvos por um árbitro que lhes validou um golo precedido de duas faltas» – e António Oliveira fechou, concludente, a questão: «Não é por acaso que se dá uma lição de futebol ao terceiro classificado do campeonato do mundo…»
Dos comprimidos para o Shéu dormir ao Chalana que era Santillana
Com Juca se fechara o primeiro jogo de Portugal sem derrota contra a Polónia: num empate no Slaski de Chorzow – e com Juca ganhou Portugal pela primeira vez à Polónia. Mas não, essa não foi partida oficial – foi um amigável disputado a 23 de setembro de 1981 em Alvalade, para disputa da Taça Totobola. Nessa noite Djão, o Djão do Belenenses, tornou-se internacional ao entrar para o lugar de Carlos Manuel.
No final do jogo, Antoni Piechniczec, o selecionador polaco, afirmou: «O árbitro foi muito bom para Portugal, muito amigo dos portugueses, perdoou um penalty nítido sobre Boniek. Mas, sim, tem bons jogadores. O Jordão e o Santillana.» Ao ouvirem-lhe: «Santillana» – os jornalistas agitaram-se em espanto. Santillana jogava na seleção de Espanha – e logo lhe perguntaram, por entre as gargalhadas, se não quereria dizer: Chalana? E Piechnczec, sem se descompor, exclamou: «Sim, esse mesmo, o Chalana! Portugal ganhou por 2-0, mas justo era ter sido 2-1…»
Os golos foram marcados por Nené e por Shéu – o de Shéu teve destaque na primeira página de «A BOLA» dizendo-se que não fora um golo, fora um golão.
Já com Otto Glória no lugar de Juca, Shéu voltou a ser convocado para novo jogo com a Polónia. Esse sim «bem mais a sério» – porque tinha em jogo a qualificação para o Euro 84.
Na véspera, Santos Neves apanhou-lhe a revelação, desconcertante: «Desde janeiro que eu não conseguia dormir mais do que cinco horas por noite. Em consequência, sentia-me física e psiquicamente mal, fui emagrecendo, cheguei a pesar apenas 66 quilos. Falaram-me em surmenage. No Benfica deram-me luz verde para tomar sedativos, mas não liguei, fujo aos comprimidos. Aqui na seleção comecei a tomá-los, já estou dormindo normalmente, a minha forma melhorou imenso. Se jogarei ou não, isso não sei… Somos 18 e nenhuma equipa pode começar com mais do que 11 ou usar mais do que 13…»
Não, não jogou – nem sequer no banco teve. Mas por imposição de Otto Glória também ele teve direito aos 150 contos que a FPF deu de prémio pela vitória por 2-1, na Luz.
Não tardou a nublar-se o ambiente em torno de Otto Glória – que já fora atacado sem piedade por Fernando Martins, presidente do Benfica. Eurico, o central do FC Porto, correu a anunciar que estava indisponível enquanto ele fosse selecionador. Deslocação à África do Sul de alguns jogadores do Marítimo com ligações a Otto – e apresentados como equipa de Portugal agitou a FIFA porque era o tempo do apartheid e do embargo desportivo. A FPF abriu inquérito e, alegando razões pessoais, Otto partiu para o Brasil, deixando a frase a ribombar: «O futebol português evoluiu muito dentro do campo mas, fora dele, está pior que quando cá estive pela primeira vez. As pessoas que vão ocupar o meu lugar têm de aprender muito bem esta lição: qualquer dia seleciona-se um grupo de pescadores e nós vamos a correr chamar-lhes seleções de Portugal.»
Logo depois, «A BOLA» revelou-o: «Cerca de dois meses antes de ser contratado, «seu» Otto ofereceu-se, através de intermediários, à FPF pretendendo apenas 200 contos por mês. Nessa altura, a FPF tinha os olhos dirigidos noutras direções. Passado algum tempo (bem pouco…), Otto Glória acabou por ir parar à Praça da Alegria pela «irrisória» quantia de 5 500 contos por ano. Como se inflacionou o valor do técnico brasileiro em apenas dois meses…»
Claro, já sem Otto, Portugal foi ganhar à Polónia – e ainda mais aberto ficou o caminho para o Euro 84. Deu no que se sabe: o o terceiro lugar rendeu 750 contos em prémios a cada jogar, 1000 valeria o título. E o Bordéus pagou 220 mil contos ao Benfica pelo passe de Chalana, ele recebeu 100 mil de luvas, ficou com ordenado mensal de 5000, na Luz ganhava 350 contos – e, no Portugal a fugir da bancarrota através do FMI, o salário mínimo andava pelos 7500 escudos.
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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